Não é uma reportagem relacionada diretamente ao nosso contexto cristão mas uma ótima reportagem relacionada as nossas capacidades mentais!
Por que tantos motoristas dirigem com os neurônios em ponto morto
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo
Por que tantos motoristas dirigem com os neurônios em ponto morto
Dirigir não é uma atividade trivial. Exige muito do nosso cérebro, mesmo quando não nos damos conta disso. Afiamos nossa atenção e nossas habilidades motoras quando engatamos a marcha, pisamos no acelerador e, segundos depois, um obstáculo nos obriga a frear.
Treinamos nossa capacidade de lidar com contrariedades quando somos “fechados” por um barbeiro, surpreendidos por um pedestre desatento ou pressionados por um motoqueiro impaciente. Prever ciladas no tráfego e escapar delas é um dos muitos exercícios mentais que o ato de dirigir nos oferece.
Talvez o mais interessante deles seja o treino de nossa capacidade de fazer escolhas. Nas cidades grandes e de trânsito quase sempre caótico, o motorista é confrontado com uma enormidade de rotas possíveis. Traça mentalmente o percurso que deseja seguir e elege o melhor caminho.
Se no meio do trajeto percebe que sua escolha foi infeliz, refaz o plano inicial, experimenta atalhos, se aventura por ruas inexploradas e imagina onde elas podem lhe levar. Tudo isso é acompanhado por emoções como angústia, raiva, pressa ou pelo simples prazer de ter descoberto um caminho esperto. É muita malhação cerebral !!!
Isso é tão benéfico para o cérebro que muitos especialistas recomendam mudanças no percurso entre a casa e o trabalho como uma forma de exercitar a memória e combater o envelhecimento precoce.
O conceito de memória vai muito além do poder de recordar. Memória é também a capacidade de planejamento, abstração, julgamento crítico e atenção. “Para conservar essas habilidades, é fundamental combater o automatismo e adotar pequenas mudanças diárias, nem que seja o caminho de casa”, afirma a terapeuta ocupacional Viviane Abreu. Especialista em memória e envelhecimento, Viviane é presidente da Associação Brasileira de Alzheimer e de Doenças Similares (ABRAz).
Nunca esqueci desse conselho que ouvi de Viviane há alguns anos enquanto preparava uma reportagem sobre como chegar à velhice com o cérebro em boa forma.
Faço o possível para segui-lo. Invento caminhos novos para chegar ao trabalho e, quando estou com tempo, percorro ruas desconhecidas apenas para ver aonde elas vão me levar. Dirijo sem pressa e aproveito para observar a arquitetura das casas, as espécies das árvores, a largura das vias. Isso pode não me livrar do Alzheimer, mas pode me livrar da rotina. É uma grande coisa.
Será que sou um ET, a única que insiste em seguir um comportamento em extinção? Cada vez mais motoristas instalam um GPS no carro e dirigem com os neurônios em ponto morto. Não tenho nada contra a tecnologia em si. O GPS é uma ferramenta incrível. O problema é o mau uso dela.
O primeiro a chamar minha atenção para isso foi meu marido. Ele também é jornalista e está acostumado a andar por São Paulo em carros de reportagem. Num sábado o motorista passou em casa para levá-lo ao centro da cidade. O caminho era muito simples e o trânsito estava ótimo. Se seguissem por três avenidas em linha reta, chegariam ao destino em 15 ou 20 minutos.
Meu marido se distraiu conversando com outro colega e o tempo foi passando. Quando percebeu que estava fazendo um tour pela Zona Oeste (passou por várias ruazinhas de Perdizes, contornou o Estádio do Pacaembu, percorreu metade de Higienópolis), perguntou se o motorista precisava pegar mais alguém antes de levá-los ao centro. Ele respondeu:
– Não. Só estou seguindo o GPS.
Algo semelhante aconteceu comigo nesta semana. O motorista passou em casa para me levar a uma entrevista no Morumbi. Ele já tinha o endereço. Assim que entrei no carro, perguntou, meio aflito:
– Você já esteve lá?
– Não, mas deve ser muito tranquilo. Vamos a uma casa numa rua rica do Morumbi.
Para amenizar a insegurança do rapaz, disse, sorrindo:
– Você tem um guia de ruas? Se a gente se perder, eu procuro no guia para você.
– Tenho.
Na curva seguinte, percebi que o guia era o GPS. O garoto deve ter me achado um dinossauro. Ele tinha a tecnologia que virou o objeto de desejo da maioria dos motoristas. Mas o efeito da tecnologia não era libertador. Era escravizante.
O rapaz guiava o carro sem observar a paisagem, sem aprender caminhos novos, sem armazenar informações que poderiam lhe ser úteis numa próxima vez. Movimentava ligeiramente o pescoço para cumprir um estilo estrábico de guiar: o olho esquerdo vigiava a pista; o direito olhava para baixo para seguir as instruções do aparelhinho acomodado junto ao câmbio.
O GPS, para variar, nos indicou rotas imbecis. Entramos na Cidade Universitária, contornamos um balão e saímos no mesmo lugar. Na volta do Morumbi, o aparelhinho nos desviou do caminho mais simples e rápido. Caímos no emaranhado de subidas e descidas da Vila Madalena. Não me estressei. Aproveitei para admirar as vitrines das lojas descoladas. O motorista estava tenso. Preocupado demais em não perder nenhuma instrução do GPS.
Onde foram parar aqueles motoristas safos de carro de reportagem? Aqueles que conheciam todas as quebradas da cidade e, a cada mudança de planos, eram capazes de criar rotas imaginárias, desviar dos engarrafamentos e ainda nos ensinar um caminho surpreendente?
O que será dos novos motoristas que estão perdendo a chance de desenvolver habilidades fundamentais para a profissão e para a vida? Não estou exagerando quando digo que sobreviver no trânsito exige um grande exercício cerebral.
Um interessante artigo sobre isso foi publicado recentemente no Journal of Environmental Psychology. Os pesquisadores da University College London estudaram o que acontece no cérebro dos taxistas quando eles enfrentam as ruas de Londres.
Imagens de ressonância magnética registraram as áreas cerebrais que eram ativadas enquanto os motoristas jogavam um videogame baseado numa simulação perfeita da capital. Os voluntários também detalharam verbalmente o que pensaram no momento em que eram expostos a desafios no trânsito. “Observamos uma maior variedade de pensamentos do que a registrada em outros estudos do gênero”, escreveu o pesquisador Hugo J. Spiers.
A escolha do caminho envolve um grande número de conexões cerebrais. O motorista planeja a rota. Quando ouve uma nova instrução do passageiro (o jogo continha esse tipo de interação) ou é surpreendido por uma obstrução, rapidamente o cérebro do motorista refaz os planos. Muitas vezes, analisa o ambiente para escolher a melhor saída.
Quando passa por ambientes muito conhecidos e sem trânsito intenso, o motorista dirige como se estivesse no “piloto automático”, quase sem pensar. “Chegar ao destino envolve muito mais do que planejar e executar esse plano. É um processo que evoca muitas emoções, desperta o interesse do condutor sobre o ambiente e o leva a considerar os pensamentos dos outros motoristas”, afirma Spiers.
Nada disso acontece quando obedecemos ao GPS passivamente. Mas tudo é questão se saber usar a tecnologia. Consultar o GPS antes de ligar o carro, é um bom exercício cerebral. É um trabalho mental semelhante ao que ocorre quando analisamos um mapa. “Estamos treinando a memória espacial. Isso melhora a capacidade de memorizar e aperfeiçoa nosso desepenho”, diz Viviane.
A maioria dos motoristas não usa o GPS dessa forma. O cérebro sai perdendo. “É importante nos organizarmos, treinar a memória e não deixar para consultar o GPS enquanto estamos dirigindo”, afirma Viviane. “Nesse caso, o aparelho ajuda a encontrar o local, mas compromete o desempenho da atenção e não permite que a informação seja arquivada na memória”, diz.
O GPS é uma grande invenção. É libertador quando ajuda os novos moradores a se locomover numa cidade desconhecida ou quando nos orienta num ambiente perigoso. É escravizante quando vira uma muleta e nos transforma em motoristas acomodados e sem discernimento. Você quer controlar o cérebro do GPS ou quer que ele controle o seu?
CRISTIANE SEGATTO
cristianes@edglobo.com.br
(Cristiane Segatto escreve aos sábados.)
Treinamos nossa capacidade de lidar com contrariedades quando somos “fechados” por um barbeiro, surpreendidos por um pedestre desatento ou pressionados por um motoqueiro impaciente. Prever ciladas no tráfego e escapar delas é um dos muitos exercícios mentais que o ato de dirigir nos oferece.
Talvez o mais interessante deles seja o treino de nossa capacidade de fazer escolhas. Nas cidades grandes e de trânsito quase sempre caótico, o motorista é confrontado com uma enormidade de rotas possíveis. Traça mentalmente o percurso que deseja seguir e elege o melhor caminho.
Se no meio do trajeto percebe que sua escolha foi infeliz, refaz o plano inicial, experimenta atalhos, se aventura por ruas inexploradas e imagina onde elas podem lhe levar. Tudo isso é acompanhado por emoções como angústia, raiva, pressa ou pelo simples prazer de ter descoberto um caminho esperto. É muita malhação cerebral !!!
Isso é tão benéfico para o cérebro que muitos especialistas recomendam mudanças no percurso entre a casa e o trabalho como uma forma de exercitar a memória e combater o envelhecimento precoce.
O conceito de memória vai muito além do poder de recordar. Memória é também a capacidade de planejamento, abstração, julgamento crítico e atenção. “Para conservar essas habilidades, é fundamental combater o automatismo e adotar pequenas mudanças diárias, nem que seja o caminho de casa”, afirma a terapeuta ocupacional Viviane Abreu. Especialista em memória e envelhecimento, Viviane é presidente da Associação Brasileira de Alzheimer e de Doenças Similares (ABRAz).
Nunca esqueci desse conselho que ouvi de Viviane há alguns anos enquanto preparava uma reportagem sobre como chegar à velhice com o cérebro em boa forma.
Faço o possível para segui-lo. Invento caminhos novos para chegar ao trabalho e, quando estou com tempo, percorro ruas desconhecidas apenas para ver aonde elas vão me levar. Dirijo sem pressa e aproveito para observar a arquitetura das casas, as espécies das árvores, a largura das vias. Isso pode não me livrar do Alzheimer, mas pode me livrar da rotina. É uma grande coisa.
Será que sou um ET, a única que insiste em seguir um comportamento em extinção? Cada vez mais motoristas instalam um GPS no carro e dirigem com os neurônios em ponto morto. Não tenho nada contra a tecnologia em si. O GPS é uma ferramenta incrível. O problema é o mau uso dela.
O primeiro a chamar minha atenção para isso foi meu marido. Ele também é jornalista e está acostumado a andar por São Paulo em carros de reportagem. Num sábado o motorista passou em casa para levá-lo ao centro da cidade. O caminho era muito simples e o trânsito estava ótimo. Se seguissem por três avenidas em linha reta, chegariam ao destino em 15 ou 20 minutos.
Meu marido se distraiu conversando com outro colega e o tempo foi passando. Quando percebeu que estava fazendo um tour pela Zona Oeste (passou por várias ruazinhas de Perdizes, contornou o Estádio do Pacaembu, percorreu metade de Higienópolis), perguntou se o motorista precisava pegar mais alguém antes de levá-los ao centro. Ele respondeu:
– Não. Só estou seguindo o GPS.
Algo semelhante aconteceu comigo nesta semana. O motorista passou em casa para me levar a uma entrevista no Morumbi. Ele já tinha o endereço. Assim que entrei no carro, perguntou, meio aflito:
– Você já esteve lá?
– Não, mas deve ser muito tranquilo. Vamos a uma casa numa rua rica do Morumbi.
Para amenizar a insegurança do rapaz, disse, sorrindo:
– Você tem um guia de ruas? Se a gente se perder, eu procuro no guia para você.
– Tenho.
Na curva seguinte, percebi que o guia era o GPS. O garoto deve ter me achado um dinossauro. Ele tinha a tecnologia que virou o objeto de desejo da maioria dos motoristas. Mas o efeito da tecnologia não era libertador. Era escravizante.
Saiba mais
O rapaz guiava o carro sem observar a paisagem, sem aprender caminhos novos, sem armazenar informações que poderiam lhe ser úteis numa próxima vez. Movimentava ligeiramente o pescoço para cumprir um estilo estrábico de guiar: o olho esquerdo vigiava a pista; o direito olhava para baixo para seguir as instruções do aparelhinho acomodado junto ao câmbio.
O GPS, para variar, nos indicou rotas imbecis. Entramos na Cidade Universitária, contornamos um balão e saímos no mesmo lugar. Na volta do Morumbi, o aparelhinho nos desviou do caminho mais simples e rápido. Caímos no emaranhado de subidas e descidas da Vila Madalena. Não me estressei. Aproveitei para admirar as vitrines das lojas descoladas. O motorista estava tenso. Preocupado demais em não perder nenhuma instrução do GPS.
Onde foram parar aqueles motoristas safos de carro de reportagem? Aqueles que conheciam todas as quebradas da cidade e, a cada mudança de planos, eram capazes de criar rotas imaginárias, desviar dos engarrafamentos e ainda nos ensinar um caminho surpreendente?
O que será dos novos motoristas que estão perdendo a chance de desenvolver habilidades fundamentais para a profissão e para a vida? Não estou exagerando quando digo que sobreviver no trânsito exige um grande exercício cerebral.
Um interessante artigo sobre isso foi publicado recentemente no Journal of Environmental Psychology. Os pesquisadores da University College London estudaram o que acontece no cérebro dos taxistas quando eles enfrentam as ruas de Londres.
Imagens de ressonância magnética registraram as áreas cerebrais que eram ativadas enquanto os motoristas jogavam um videogame baseado numa simulação perfeita da capital. Os voluntários também detalharam verbalmente o que pensaram no momento em que eram expostos a desafios no trânsito. “Observamos uma maior variedade de pensamentos do que a registrada em outros estudos do gênero”, escreveu o pesquisador Hugo J. Spiers.
A escolha do caminho envolve um grande número de conexões cerebrais. O motorista planeja a rota. Quando ouve uma nova instrução do passageiro (o jogo continha esse tipo de interação) ou é surpreendido por uma obstrução, rapidamente o cérebro do motorista refaz os planos. Muitas vezes, analisa o ambiente para escolher a melhor saída.
Quando passa por ambientes muito conhecidos e sem trânsito intenso, o motorista dirige como se estivesse no “piloto automático”, quase sem pensar. “Chegar ao destino envolve muito mais do que planejar e executar esse plano. É um processo que evoca muitas emoções, desperta o interesse do condutor sobre o ambiente e o leva a considerar os pensamentos dos outros motoristas”, afirma Spiers.
Nada disso acontece quando obedecemos ao GPS passivamente. Mas tudo é questão se saber usar a tecnologia. Consultar o GPS antes de ligar o carro, é um bom exercício cerebral. É um trabalho mental semelhante ao que ocorre quando analisamos um mapa. “Estamos treinando a memória espacial. Isso melhora a capacidade de memorizar e aperfeiçoa nosso desepenho”, diz Viviane.
A maioria dos motoristas não usa o GPS dessa forma. O cérebro sai perdendo. “É importante nos organizarmos, treinar a memória e não deixar para consultar o GPS enquanto estamos dirigindo”, afirma Viviane. “Nesse caso, o aparelho ajuda a encontrar o local, mas compromete o desempenho da atenção e não permite que a informação seja arquivada na memória”, diz.
O GPS é uma grande invenção. É libertador quando ajuda os novos moradores a se locomover numa cidade desconhecida ou quando nos orienta num ambiente perigoso. É escravizante quando vira uma muleta e nos transforma em motoristas acomodados e sem discernimento. Você quer controlar o cérebro do GPS ou quer que ele controle o seu?
CRISTIANE SEGATTO
cristianes@edglobo.com.br
(Cristiane Segatto escreve aos sábados.)
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