sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Soberania de Deus e a Oração - Arthur W. Pink

A Soberania de Deus e a Oração


Arthur W. Pink


Se pedirmos alguma cousa segundo a sua vontade, ele nos ouve. 1 João 5.14

Por todo este livro, nosso principal propósito tem sido exaltar o Criador e humilhar a criatura. A tendência quase universal hoje em dia é a de magnificar o homem e desonrar e degradar a Deus. A todo instante verifica-se que, quando os assuntos espirituais estão sendo debatidos, os homens insistem sobre o lado e o elemento humanos; e o lado divino, quando não é totalmente ignorado, é relegado a segundo plano. Isso se aplica a considerável parcela dos ensinamentos modernos concernentes à oração. Na grande maioria dos livros escritos e dos sermões pregados acerca da oração, o elemento humano domina o cenário quase completamente; fala-se das condições que nós devemos preencher, das promessas que nós devemos "reivindicar", das coisas que nós devemos fazer, para que os nossos pedidos sejam atendidos, mas as exigências de Deus, os direitos de Deus, a glória de Deus são freqüentemente deixados de lado.
Como exemplo típico do que está sendo divulgado hoje em dia, submetemos ao leitor um breve editorial (intitulado "Oração ou Fatalidade?") que apareceu recentemente em um importante semanário religioso.




Deus, em sua soberania, ordenou que os destinos dos homens possam ser modificados e moldados pela vontade do homem. Este é o âmago da verdade de que a oração muda as coisas, ou seja, que Deus muda as coisas quando os homens oram. Alguém expressou isso de maneira admirável, nos seguintes termos: "Há certas coisas que sucederão na vida de um homem, quer ele ore, quer não. Há outras coisas que acontecerão se ele orar e que não acontecerão se ele não orar". Um cristão ficou de tal modo impressionado com essas afirmações, que, ao entrar em um escritório comercial, orou que o Senhor lhe desse a oportunidade de falar sobre Cristo a alguém, tendo em vista que as condições seriam favoráveis devido à sua oração. Então, sua mente se ocupou com outras coisas e acabou esquecendo-se de sua oração. Teve a oportunidade de falar de Cristo ao negociante com o qual estava conversando, mas não aproveitou a ocasião, e somente quando saía é que lembrou-se da oração e da resposta divina. Ele prontamente voltou e começou a conversar com o negociante, o qual, apesar de ser membro de uma igreja evangélica, nunca havia sido inquirido se era salvo ou não. Dediquemo-nos à oração, abrindo assim o caminho para que Deus mude as coisas. Cuidado para que não sejamos virtualmente fatalistas, deixando de exercer, através da oração, as disposições que nos chegam da parte de Deus.
Essa citação ilustra o que hoje em dia se ensina sobre o tema da oração; e o mais deplorável é que dificilmente uma voz se levanta em protesto. Dizer que "os destinos dos homens podem ser mudados e moldados pela vontade do homem" é crassa heresia; não há outra maneira de descrever tal aberração. Se alguém contestar essa classificação, nós o desafiamos a descobrir qualquer descrente que não concorde com ela, e estamos certos de que nenhum será encontrado. Dizer que "Deus ordenou que os destinos dos homens podem ser mudados e moldados pela vontade do homem" é algo completamente falso. O destino humano é decidido, nãonem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus". Dizer que o destino humano pode ser mudado pela vontade do homem é tornar suprema a vontade da criatura, o que virtualmente significa destronar a Deus. Mas, que dizem as Escrituras? Que elas respondam: "O SENHOR o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir. O SENHOR empobrece e enriquece; abaixa e também exalta. Levanta o pobre do pó e desde o monturo exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória" (I Sm 2:6-8). pela "vontade do homem," e, sim, pela vontade de Deus. O que determina o destino do homem é se o homem nasceu de novo ou não, porquanto está escrito: "Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus" (Jo 3:3). E qualquer dúvida, se é a vontade de Deus ou a vontade do homem a responsável pelo novo nascimento, é esclarecida, de forma inequívoca, em João 1:13: "Os quais não nasceram do sangue,
Voltando ao editorial citado anteriormente, lemos: "Este é o âmago da verdade de que a oração muda as coisas, ou seja, que Deus muda as coisas quando os homens oram". Em quase todos os lugares para onde se vai, hoje em dia, vêem-se cartazes com a seguinte declaração: "A Oração Muda as Coisas". O significado que se quer emprestar a essas palavras vê-se com clareza na atual literatura sobre a oração—nós temos de persuadir Deus a mudar o seu propósito. Quanto a isso, adiante diremos mais alguma coisa.
Diz-nos ainda o editorial: "Alguém expressou isso de maneira admirável, nos seguintes termos: ‘Há certas coisas que sucederão na vida de um homem, quer ele ore, quer não." Que certas coisas sucedem, quer a pessoa ore, quer não, é diariamente exemplificado na vida dos não-regenerados, e a maior parte deles nunca ora. Mas a afirmativa de que "Há outras coisas que acontecerão se ele orar" precisa ser definida. Se um crente orar com fé e pedir coisas que estão de acordo com a vontade de Deus, certamente obterá aquilo que pediu. Da mesma forma, que outras coisas acontecerão se ele orar também é verdade no que diz respeito aos benefícios resultantes da oração: Deus se tornará mais real para quem orar, e suas promessas tornar-se-ão mais preciosas. Que outras coisas "não acontecerão se ele não orar" é verdadeiro quanto vida da própria pessoa—vida sem oração é uma vida desfrutada sem a comunhão com Deus e com tudo quanto está envolvido nessa falta de comunhão. Porém, afirmar que, se não orarmos, Deus não cumprirá o seu eterno propósito é incorrer em grande erro, porque o mesmo Deus que decretou os fins também decretou os meios pelos quais suas finalidades serão alcançadas; e um desses meios é a oração. Quando Deus determina conceder uma bênção, também outorga o espírito de súplica que Lhe solicita essa mesma bênção.
O exemplo citado no editorial (o caso do obreiro e do negociante) é muito infeliz. Segundo os termos da ilustração, a oração do obreiro não foi respondida de modo algum, visto que, conforme parece, não foi aberto o caminho para este falar ao negociante acerca de sua alma. Entretanto, quando já deixava o escritório, ao lembrar-se da oração feita, o obreiro (talvez por motivo carnal) resolveu responder a oração por si mesmo e, ao invés de permitir que o Senhor lhe "abrisse a oportunidade," tomou o caso em suas próprias mãos.
Citamos agora um trecho de um dos últimos livros publicados sobre a oração, no qual o autor declara: "As possibilidades e a necessidade da oração, seu poder e seus resultados se manifestam no refrear e alterar os propósitos de Deus e no aliviar o impacto do seu poder." Uma afirmação tal como esta é uma horrível consideração sobre o caráter do Deus Altíssimo, o qual, "segundo a sua vontade ..., opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?" (Dn 4:35). Não há a mínima necessidade de Deus modificar os seus desígnios ou alterar os seus propósitos, e isso por uma razão mais do que suficiente: foram elaborados sob a influência de perfeita bondade e de infalível sabedoria. Os homens podem ter motivos para alterarem os seus propósitos, porquanto, em sua pequena capacidade de ver as coisas, são incapazes de antecipar o que pode suceder depois de traçados os seus planos. Com Deus, entretanto, não é assim, pois Ele conhece o fim desde o princípio. Afirmar que Deus altera os seus propósitos ou é impugnar a sua bondade, ou é negar a sua eterna sabedoria.
No mesmo livro, lemos ainda: "As orações dos santos de Deus são o patrimônio, no céu, por meio do qual Cristo leva adiante a sua grande obra sobre a terra. Os grandes espasmos e as poderosas convulsões que há na terra resultam dessas orações. O mundo é alterado, revolucionado; os anjos se movimentam com vôos mais poderosos e mais rápidos; a política de Deus é moldada na medida em que as orações se tornam mais numerosas, mais eficientes." Se possível, esse trecho é ainda pior que o anterior, e não hesitamos em declarar que foi escrito em desafio ao ensino bíblico. Em primeiro lugar, nega diretamente Efésios 3:11, que se refere ao "eterno propósito" de Deus. Se o propósito de Deus é eterno, segue-se que sua "política" não está sendo "moldada" em nossos dias. Segundo, contradiz o trecho de Efésios 1:11, o qual declara expressamente que Deus "faz todas as cousas conforme o conselho da sua vontade." Segue-se, pois, que a "política de Deus" nãonossasDeus, então o Altíssimo está subordinado aos vermes da terra. Com exatidão perguntou o Espírito Santo, através do apóstolo: "Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?" (Rm. 11:34). está sendo "moldada" pelas orações dos homens. Terceiro, uma asserção como essa dá posição de supremacia à vontade da criatura humana, porque, se as orações moldam a política de
Os pensamentos mencionados acima, sobre a oração, são frutos de conceitos mesquinhos e inadequados quanto à pessoa de Deus. Deve ser óbvio que pouco ou nenhum consolo se pode alcançar em orar a um Deus que é como um camaleão, que muda diariamente de cor. Que encorajamento poderia haver em elevarmos diariamente o coração a um ser cuja atitude de ontem já não é a de hoje? Que vantagem haveria em mandarmos uma petição a um monarca terreno, se soubéssemos ser ele tão mutável, que atende petições em um dia, somente para revogá-las no dia seguinte? Não é a imutabilidade de Deus nosso maior encorajamento para orarmos? Visto que Deus não sofre "variação ou sombra de mudança" temos a certeza de que seremos ouvidos. Mui correta foi a observação de Lutero: "Orar não é vencer a relutância de Deus, mas é apropriar-se do beneplácito dEle."
Isso nos leva a fazer algumas observações quanto ao desígnio da oração. Por quedivino. Examinemos, portanto, algumas das razões por que Deus nos mandou que orássemos. ordenou Deus que orássemos? A vasta maioria das pessoas responderia: a fim de obtermos de Deus as coisas que necessitamos. Mas, embora este seja um dos propósitos da oração, não é o principal, sob hipótese alguma. Além disso, esse ponto de vista considera a oração somente pela perspectiva humana, quando há tremenda necessidade de considerá-la pelo lado
Em primeiro e máximo lugar, a oração foi instituída para que o próprio Senhor Deus seja honrado. Deus requer que reconheçamos que Ele é, de fato, "o Alto, o Sublime, que habita a eternidade" (Is. 57:15). Deus requer que reconheçamos o seu domínio universal. Quando Elias orou para que chovesse, reconheceu que Deus exerce controle sobre os elementos da natureza; ao orarmos que Deus liberte um miserável pecador da ira vindoura, reconhecemos que "ao SENHOR pertence a salvação!" (Jn. 2:9); ao suplicarmos que Ele abençoe a pregação do evangelho até aos confins da terra, declaramos que Ele é quem rege o mundo inteiro.
Além disso, Deus requer que O adoremos. A oração, a verdadeira oração, é um ato de adoração. Assim é, pois a oração consiste em prostrar-se a alma perante Ele; a oração é o invocar o grandioso e santo nome de Deus; a oração é o reconhecimento da bondade, do poder, da imutabilidade e da graça de Deus; também é o reconhecimento da soberania divina, confessada quando nossa vontade se submete à dEle. E de elevada significação notarmos, a esse respeito, que Cristo não chamou o templo de Jerusalém de Casa de Sacrifício, e, sim, de Casa de Oração.
Igualmente, a oração redunda na glória de Deus, pois, ao orarmos, reconhecemos que dependemos dEle. Ao dirigirmos humildemente as nossas súplicas a Deus, nos entregamos ao seu poder e à sua misericórdia. Ao buscarmos bênçãos da parte de Deus, reconhecemos que ele é o Autor e a Fonte de toda boa dádiva e todo dom perfeito. Que a oração glorifica a Deus também se vê no fato que ela promove o exercício da fé. E nada, da nossa parte, honra e agrada tanto a Deus como a confiança que Lhe votam os nossos corações.
Em segundo lugar, a oração foi designada por Deus a fim de ser uma bênção espiritual para nós, um meio para o nosso crescimento na graça. Quando procuramos entender o desígnio da oração, isso deve sempre nos impressionar, ao invés de considerarmos a oração como um mero instrumento pelo qual obtemos o suprimento de nossas necessidades. A oração foi planejada por Deus para nos humilhar. A oração autêntica consiste em chegarmos à presença de Deus, tendo consciência de sua sublime majestade, o que produz em nós o reconhecimento de nossa insignificância e indignidade. Também, a oração foi destinada por Deus para o exercício de nossa fé. A fé é gerada pela Palavra (Rm. 10:17), mas é exercida quando oramos. Por isso é que lemos sobre a "oração da fé" Da mesma forma, a oração aciona o amor. No tocante ao hipócrita, indaga-se: "Deleitar-se-á o perverso no Todo-poderoso e invocará a Deus em todo o tempo?" (Jó. 27:10). Porém, os que amam o Senhor não podem ficar muito tempo longe dEle, porque se deleitam em falar-Lhe dos seus pesares. Além de despertar nosso amor, as respostas diretas, concedidas às nossas preces, incrementam nosso amor a Deus:
"Amo o SENHOR, porque ele ouve a minha voz e as minhas súplicas" (Sl. 116:1). E há mais: a oração foi designada por Deus para nos ensinar o valor das bênçãos que procuramos da parte dEle, o que nos dá ainda maior regozijo, quando Ele nos concede aquilo que pedimos.
Em terceiro lugar, a oração foi designada por Deus a fim de que procuremos, da parte dEle, as coisas de que precisamos. Mas, pode surgir aqui uma dificuldade para quem leu cuidadosamente os primeiros capítulos deste livro. Se Deus predestinou tudo quanto acontece na história, desde antes da fundação do mundo, qual é a utilidade da oração? Se é verdade que "dele, e por meio dele, e para ele são todas as cousas" (Rm. 11:36), então, por que orar? Antes de respondermos diretamente a essas perguntas, devemos salientar que há um justo motivo para a indagação: Qual é a utilidade de chegar-se alguém a Deus para dizer-Lhe aquilo que Ele já sabe? Para que eu Lhe apresentaria a minha necessidade, se Ele já tem conhecimento do que preciso? E também há motivos para a objeção: Qual é o valor da oração por alguma coisa, se tudo já foi predestinado por Deus? A oração não tem o propósito de dar informações a Deus, como se Ele ignorasse as coisas. O Salvador declarou expressamente: "Porque Deus, vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais" (Mt. 6:8). A finalidade da oração é expressar a Deus nosso reconhecimento pelo fato que Ele já sabe aquilo que necessitamos. A oração jamais se destinou a proporcionar a Deus o conhecimento daquilo que precisamos; antes, visa a ser o meio de Lhe confessarmos nosso senso da necessidade que temos. Nisto, como em tudo o mais, os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos. Deus requer que as suas dádivas sejam buscadas. Seu desígnio é ser Ele honrado através de nossas petições e ser Ele o alvo de nossa gratidão, depois de haver concedido as bênçãos que buscávamos.
Entretanto, a pergunta ainda exige resposta: Se Deus predestinou tudo quanto sucede e regula todos os acontecimentos, não será a oração um exercício sem nenhum proveito? Uma resposta suficiente para essa pergunta é o fato que Deus nos manda orar: "Orai sem cessar" (I Ts. 5:17). E também temos "o dever de orar sempre e nunca esmorecer" (Lc. 18:1). E mais ainda, as Escrituras declaram que "a oração da fé salvará o enfermo", e também: "Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo" (Tg. 5:15-16). E o Senhor Jesus Cristo—nosso perfeito exemplo em todas as coisas—foi, preeminentemente, um homem de oração. E claro, pois, que a oração não é sem significado e poder. Mas isso ainda não remove a dificuldade nem responde à pergunta em foco. Qual é, pois, a relação entre a soberania divina e a prece feita por um crente?
Em primeiro lugar, diríamos enfaticamente que a oração não tem a finalidade de alterar os desígnios de Deus, nem de movê-lo a formular novos propósitos. Deus já decretou que certas coisas hão de suceder, mas também decretou que sucederão através dos meios que Ele mesmo determinou para levá-las a efeito. Deus escolheu certas pessoas para a salvação, mas também decretou que sejam salvas através da pregação do evangelho. O evangelho, pois, é um dos meios determinados para a concretização do conselho eterno do Senhor. A oração é outro desses meios. Deus decretou os fins, mas igualmente os meios, e entre esses está a oração. Até as orações do seu povo fazem parte dos seus decretos eternos. Portanto, longe de serem vãs, as orações são instrumentos, entre outros, por meio dos quais Deus cumpre os seus decretos. "Se, na verdade, tudo sucede pelo cego acaso ou por necessidade fatal, não haveria qualquer eficácia moral nas orações, e nenhuma utilidade; mas, sendo reguladas pela orientação da sabedoria divina, as orações têm um lugar na ordem dos acontecimentos" (Haldane).
As Escrituras ensinam claramente que as orações em favor das coisas decretadas por Deus não são destituídas de significado. Elias sabia que Deus estava prestes a conceder chuva, mas isso não o impediu de dedicar-se à oração. Daniel entendeu, pelos escritos dos profetas, que o cativeiro não haveria de durar mais de setenta anos. Mas, quando esse período já chegava ao fim, a Bíblia relata que ele voltou o "rosto ao Senhor Deus, para o buscar com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza" (Dn. 9:2-3). Deus disse ao profeta Jeremias: "Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito, diz O SENHOR, pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais." Porém, ao invés de acrescentar que não havia nenhuma necessidade do profeta solicitar essas coisas, determinou-lhe: "Então me invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei" (Jr. 29:11-12).
Lemos também, em Ezequiel 36, evidentes, positivas e incondicionais promessas feitas por Deus quanto à futura restauração de Israel. Todavia, o versículo 37 declara: "Assim diz O SENHOR Deus: Ainda nisto permitirei que seja eu solicitado pela casa de Israel, que lhe multiplique eu os homens como rebanho." Eis, pois, o desígnio da oração: não para que seja alterada a vontade do Senhor, mas, antes, para que seja ela cumprida, dentro do prazo e dos meios estabelecidos por Ele. Visto que Deus prometeu certas coisas, podemos pedi-las com plena certeza de fé. Faz parte do propósito de Deus que sua vontade se realize através dos meios por Ele determinados e que possa Ele fazer o bem a seu povo, segundo as suas condições, a saber, pelos "meios" e "condições" da petição e da súplica. Porventura o Filho de Deus não sabia com certeza que depois de sua morte e ressurreição seriapediu exatamente isso: "E agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo" (Jo. 17:5)! Não sabia Cristo que nenhum dos seus poderia perecer? Mas, apesar disso, pediu ao Pai que os guardasse (Jo. 17:11)! exaltado pelo Pai? Certamente o sabia. Contudo, Ele
Finalmente, deve-se dizer que a vontade de Deus é imutável, não podendo ser alterada por nossos clamores. Quando a mente divina não se inclina a fazer o bem a determinado povo, a vontade dEle não pode ser alterada através das mais fervorosas e importunas orações, até mesmo daqueles que desfrutam da maior comunhão com ele—"Disse-me, porém, o SENHOR: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, meu coração não se inclinaria para este povo; lança-os de diante de mim, e saiam" (Jr. 15:1). A oração de Moisés para entrar na Terra Prometida é um caso semelhante.
Nossos pontos de vista sobre a oração carecem de revisão para se harmonizarem com os ensinos das Escrituras, quanto a esse aspecto. Parece que a idéia que atualmente prevalece é esta: apresento-me a Deus para pedir algo que quero e passo a ter a certeza de que Ele me dará aquilo que Lhe pedi.
Porém, essa é uma idéia que avilta e degrada a Deus. As crenças populares reduzem Deus à função de servo, nosso servo—cumprindo nossas ordens, executando nossa vontade, atendendo nossos desejos. Não! Orar é vir a Deus, contando-Lhe a minha necessidade, entregando-Lhe os meus caminhos, deixando-O agir conforme melhor Lhe aprouver. Isto torna minha vontade sujeita à dEle, ao invés de, como no caso anterior, procurar que a vontade dEle se sujeite à minha. Nenhuma oração agradará a Deus se não for movida pelo espírito que diz: "Não se faça a minha vontade, e, sim, a tua" (Lc 22.42). "Quando Deus concede bênçãos àqueles que oram, não o faz por causa das orações deles, como se Ele tivesse sido influenciado e mudado por elas; é por causa de Si mesmo, por sua própria vontade e beneplácito soberanos. Se alguém perguntar: Qual, pois, é o propósito da oração?, a resposta deve ser: esse é o meio e o método que Deus ordenou para transmitir a seu povo as bênçãos de sua própria bondade. Porque, embora tenha determinado, provido e prometido as bênçãos, Ele deseja que Lhe sejam solicitadas; é nosso dever e privilégio pedi-las. Quando os crentes são abençoados com o espírito de súplica, isso prediz coisas boas, e parece provável que Deus tem em mira conceder essas boas coisas, as quais sempre devem ser pedidas com a atitude de submissão à vontade de Deus, dizendo-se: ‘Não se faça a minha vontade, e, sim, a tua’" (John Gill).
A distinção que acaba de ser notada tem grande importância prática em relação à nossa paz de coração. Talvez nada há que deixe os crentes tão perplexos como o problema das orações não respondidas. Eles pediram algo da parte de Deus; segundo a sua capacidade de discernir as coisas, acham que pediram com fé, crendo que receberiam aquilo que era alvo de suas súplicas ao Senhor; pediram com seriedade, por repetidas vezes, mas a resposta não veio. Em muitos casos, o resultado é que vai diminuindo a confiança na eficácia da oração, até que a esperança termina por ceder lugar ao desespero, quando, então, já não buscam mais o trono da graça. Não é assim que acontece?
Ora, os nossos leitores ficariam surpresos se disséssemos que cada oração confiante e verdadeira, apresentada a Deus foi respondida? Sem hesitação o afirmamos. Porém, ao assim dizermos, precisamos voltar à nossa própria definição de oração. Repetiremos: Orar é vir perante Deus, contando-Lhe a nossa necessidade (ou a necessidade de outrem), entregando-Lhe os nossos caminhos, deixando-O agir conforme melhor Lhe aprouver. Isso deixa nas mãos de Deus o responder à oração do modo que Lhe agrade; e, por muitas vezes, sua resposta pode ser exatamente o oposto daquilo que seria mais aceitável à carne. Porém, se realmente tivermos deixado nas mãos de Deus a nossa necessidade, não deixará de haver resposta da parte dEle. Examinemos dois exemplos.
Em João 11, lê-se acerca da enfermidade de Lázaro. O Senhor Jesus o amava, mas achava-se ausente de Betânia. As irmãs do enfermo mandaram um mensageiro ao Senhor, para informá-Lo sobre o estado de Lázaro. Notemos, especialmente, como formularam o apelo: "Senhor, está enfermo aquele a quem amas." Apenas isso. Não pediram que Jesus curasse a Lázaro. Não pediram que Ele se apressasse a vir a Betânia. Simplesmente Lhe apresentaram a sua necessidade, deixando o caso aos cuidados dEle, permitindo que Ele agisse conforme Lhe parecesse melhor! Qual foi a resposta do Senhor? Respondeu-lhes o silencioso apelo? Com certeza Ele o respondeu, embora talvez não do modo como esperavam. Sua resposta foi demorar-se "dois dias no lugar onde estava" (Jo. 11:6), permitindo que Lázaro falecesse! O caso, porém, não parou aí. Mais tarde, Jesus foi a Betânia e ressuscitou a Láza-ro. Nossa finalidade, ao mencionarmos esse incidente, é ilustrar a atitude correta que o crente deve assumir perante Deus, na hora da necessidade. O próximo exemplo dará ênfase ao método de Deus para responder às necessidades de seus filhos.
Abra sua Bíblia em II Coríntios 12. Ao apóstolo Paulo fora conferido um privilégio inédito. Ele havia sido arrebatado ao paraíso. Os seus ouvidos ouviram e os seus olhos contemplaram o que nenhum outro ser humano já vira ou ouvira nesta vida. A maravilhosa revelação foi mais do que o apóstolo poderia suportar. O perigo era o de ensoberbecer-se pela extraordinária experiência. Por isso, foi-lhe posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para esbofeteá-lo, a fim de que ele não se exaltasse. Então, Paulo deixou na presença do Senhor a sua necessidade; por três vezes rogou ao Senhor que afastasse dele o espinho na carne. Essa oração foi respondida? Sim, embora não segundo a maneira desejada por Paulo. O "espinho" não foi removido, mas ao apóstolo foi concedido graça para suportá-lo. O fardo não foi retirado, mas Paulo recebeu forças para carregá-lo.
Haverá quem objete que é nosso privilégio fazer algo mais do que meramente deixar nossa necessidade perante Deus? Haverá quem nos lembre que Deus, por assim dizer, nos deu um cheque em branco, convidando-nos a preenchê-lo? Haverá quem diga que as promessas divinas abragem tudo e que podemos pedir ao Senhor o que quisermos? Nesse caso, também precisamos chamar atenção para o fato que é mister comparar a Escritura com a própria Escritura para que conheçamos a plena vontade de Deus em qualquer questão; e que, ao assim fazermos, descobriremos que Deus condicionou as suas promessas, ao dizer: "Se pedirmos alguma cousa segundo a sua vontade, ele nos ouve" (I Jo. 5:14). A verdadeira oração é a comunhão com Deus, de tal maneira que surgem pensamentos comuns à mente dEle e à nossa, O que necessitamos é que Ele nos encha o coração com os pensamentos dEle; e então os desejos dEle serão nossos, a fluir em direção a Ele. Aqui, pois, está o ponto de encontro entre a soberania de Deus e a oração cristã: se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, Ele nos ouve; mas, se não Lhe pedirmos assim, não nos ouve. E, conforme disse Tiago: "Pedis e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres" (Tg. 4:3).
Mas, não disse o Senhor Jesus a seus discípulos: "Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes alguma cousa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome" (Jo. 16:23)? Sim, disse. Mas essa promessa não concede carta branca àqueles que oram. Essas palavras de nosso Senhor estão em perfeito acordo com as do apóstolo João: "Se pedirmos alguma cousa segundo a sua vontade, ele nos ouve." O que vem a ser pedir "em nome de Cristo?" Certamente é muito mais do que mera fórmula de oração, mais do que simplesmente concluir nossas súplicas com as palavras "em nome de Jesus." Solicitar algo de Deus, em nome de Cristo, quer dizer solicitar-lhe algo em harmonia com a natureza de Cristo! Pedir algo a Deus em nome de Cristo é como se o próprio Cristo estivesse formulando a petição. Só podemos pedir a Deus aquilo que Cristo pediria. Pedir em nome de Cristo, pois, significa deixar de lado nossa vontade própria, aceitando a vontade de Deus!
Ampliemos agora nossa definição de oração. O que é oração? Oração não é tanto um ato, mas uma atitude—atitude de dependência, dependência de Deus. Orar é uma confissão feita pela criatura, reconhecendo sua própria fraqueza, sua total incapacidade. Orar é reconhecer nossa necessidade e expô-la diante de Deus. Não estamos dizendo que isto é tudo que está envolvido na oração; não é. Apenas dizemos que esse é o elemento essencial e primário da oração. Reconhecemos, sem hesitação, que somos totalmente incapazes de dar uma definição completa da oração no espaço de uma breve frase ou até mesmo no âmbito de qualquer número de palavras. A oração é tanto uma atitude como um ato, um ato humano; todavia, há também o elemento divino, e é isso que impossibilita fazer uma análise exaustiva, o que, aliás, seria uma irreverente tentativa. Ainda que reconheçamos isso, voltamos a insistir em que a oração é, fundamentalmente, uma atitude de dependência de Deus. Por conseguinte, a oração é o oposto de imposição a Deus. Visto que a oração é uma atitude de dependência, aquele que realmente ora é submisso, submisso à vontade divina; e submissão à vontade divina quer dizer que ficamos satisfeitos quando o Senhor supre nossas necessidades de acordo com os ditames de seu soberano beneplácito. E por essa razão que dizemos que toda oração feita a Deus com esse espírito traz a certeza de receber resposta da parte dEle.
Aqui, pois, encontramos resposta para nossa pergunta inicial, bem como a solução bíblica para a aparente dificuldade. A oração não consiste em insistir, do Senhor Deus, para que Ele altere seus propósitos ou formule novos propósitos. Orar é assumir uma atitude de dependência para com Deus, é expor-Lhe a nossa necessidade, é pedir-Lhe coisas que estejam em conformidade com a sua vontade; não há, pois, absolutamente nada que seja incoerente entre a soberania divina e a oração cristã.
Ao encerrar este capítulo, queremos proferir uma palavra de advertência, a fim de evitar que o leitor tire uma conclusão falsa daquilo que foi dito. Não temos procurado sumariar todo o ensino bíblico acerca desse assunto, nem temos procurado discutir, de modo geral, o problema da oração. Pelo contrário, temos confinado nossa atenção, mais ou menos, a uma consideração sobre o relacionamento entre a soberania de Deus e a oração cristã. O que escrevemos acima tenciona ser, principalmente, um protesto contra certos aspectos de ensinos modernos que ressaltam a tal ponto o elemento humano na oração, que o lado divino quase se perde inteiramente de vista.
Lemos, em Jeremias 10:23: "Eu sei, Ó SENHOR, que não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos" (compare Pv. 16:9). O homem, entretanto, em muitas de suas orações, propõe-se, irreverentemente, a dirigir o Senhor quanto ao caminho que Ele deve seguir, quanto àquilo que Ele deve fazer, dando a entender até mesmo que, se o homem fosse o responsável pelos acontecimentos do mundo e da igreja, modificaria totalmente as coisas. Isso é algo inegável; porque qualquer pessoa dotada de um pouco de discernimento espiritual não deixaria de perceber tal atitude em muitas reuniões de oração onde impera a carne. Quão lentos somos todos nós em aprender a lição de que a criatura altiva precisa ser posta de joelhos, humilhada até ao pó. É exatamente nessa situação que o próprio ato da oração procura colocar-nos. Mas o homem, com sua usual perversidade, transforma o escabelo em trono, de onde procura dirigir o Deus Altíssimo quanto àquilo que Ele deveria fazer! Isso deixa no espectador a impressão de que, se Deus tivesse a metade da compaixão daqueles que estão orando, logo tudo ficaria em ordem! Tal é a arrogância da velha natureza, até mesmo em um filho de Deus.
Nosso principal propósito, neste capítulo, é salientar a necessidade de submetermos nossa vontade à vontade de Deus, em nossas orações. Contudo, também se deve acrescentar que a oração é mais do que um exercício piedoso, sendo muito diferente da realização mecânica de um dever. A oração, na verdade, é um meio escolhido por Deus pelo qual podemos obter dEle o que Lhe pedimos, sob a condição de pedirmos coisas que estejam de acordo com a vontade dEle. Estas páginas terão sido escritas em vão se não levarem tanto seu autor como seus leitores a instarem com maior zelo do que antes: "Senhor, ensina-nos a orar" (Lc. 11:1).
FONTE: CPRC 

Detran apela a Deus para conter acidentes de trânsito

O Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul) vai atuar junto com líderes religiosos, com o objetivo de ampliar as ações de conscientização e reduzir índices de acidentes.

Nesta quinta feira (10), no Hotel Jandaia acontecerá o I Encontro de Líderes em Prol da Vida no Trânsito, onde o diretor-presidente do Detran-MS, Carlos Henrique dos Santos Pereira fará uma palestra sobre o tema para os líderes religiosos.

Segundo Carlos Henrique, as palavras proferidas por um líder levam os ouvintes a refletir sobre o que foi dito, pois o líder comunica para a mente e para o coração, de modo que essa reflexão implicará em mudanças de atitudes e comportamentos capazes de influenciar positivamente no ato de dirigir e comportar-se no trânsito.

O encontro contará com a participação de vários líderes religiosos.

Fonte: Correio do Estado

Vaticano: ensino da religião católica nas escolas não pode ser substituído

O ensino da religião católica nas escolas não poderá ser substituído por matérias como história das religiões, de ética ou de cultura religiosa segundo informou o governador regional da Congregação Vaticana para a Educação Católica, Zenon Grocholewski. A carta, enviada às conferências episcopais em maio, foi publicada pelo diário La Repubblica nesta quinta-feira.

Grocholewski descreveu na carta que isso significaria "dano e marginalização dos estudantes que pedem para estudar a religião católica". Ainda segundo a carta, o ensino da religião "não pode estar limitado a uma exposição das distintas religiões, em modo comparativo ou neutro", mas deve concentrar-se no ensino da religião católica, acrescenta.

"O poder civil deve reconhecer a vida religiosa dos cidadãos e favorecê-la, mas sai de seus limites se tentar dirigir ou impedir os atos religiosos, pois concerne à Igreja estabelecer os conteúdos autênticos do ensino da religião católica na escola, garantindo assim aos pais e aos alunos o que vem ensinando no catolicismo", acrescenta Grocholewski.

No final do mês de agosto, a Câmara dos Deputados regulamentou o direito à liberdade religiosa, em projeto que repete diversos artigos do acordo entre o Brasil e o Vaticano, adaptando-os a todas as religiões. Entre os artigos, está a questão do ensino religioso. Em vez de proibir a discriminação de qualquer credo na aplicação dessa disciplina nas escolas públicas (como aconteceu no caso do acordo com o Vaticano), o projeto proíbe o proselitismo, que é a atividade de catequizar uma pessoa.

Na ocasião, o acordo foi contestado pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea). "Como o ensino vai ser católico e não proselitista? Ensino confessional (relacionado a uma religião) é proselitista por definição", explicou o presidente Daniel Sottomaior, em entrevista à Agência Brasil no dia 23 de agosto, considerando que o acordo é "o maior retrocesso em termos de laicidade do Estado nesses 120 anos de República"

No dia 27 de agosto, o ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou à Agência Brasil que a assinatura de um acordo internacional entre o governo brasileiro e o Vaticano é constitucional, não contrariando o preceito de que o Estado é laico. O ministro disse na ocasião que o acordo "afirma a laicidade" da estrutura constitucional do País. "Eu participei da discussão, e não há nele qualquer tipo de privilégio que não seja considerado um direito universal de qualquer igreja reconhecida no País", afirmou Tarso Genro.

Na carta divulgada pelo diário La Repubblica nesta quinta, Grochowski lembra o debate sobre o ensino religioso em "alguns casos de novas regulamentações civis em determinados países", que teriam a intenção de aplicar um ensino multiconfessional. "Se o ensino religioso fosse limitado a uma exposição das diversas religiões em modo comparativo ou neutro, se poderia criar confusão ou gerar relativismo ou indiferença religiosa", explicou o governador regional da Congregação Vaticana para a Educação Católica.

Fonte: Terra

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O problema é que, nesse tempo todo, acabou criando um monte de palavras difíceis. Mas fique calmo: agora você vai entender o que elas significam 1.

por Texto Fabio Marton e Leandro Narloch
Há 3 mil anos o ser humano tenta resolver o problema da morte, descobrir sua missão no mundo e aprender a decidir o que é certo ou errado. O problema é que, nesse tempo todo, acabou criando um monte de palavras difíceis. Mas fique calmo: agora você vai entender o que elas significam
1.
Cartesianismo: Duvidar de tudo, negar tudo que não resiste à dúvida, como queria o francês René Descartes , o principal dos filósofos modernos. No livro Meditações Metafísicas, de 1641, Descartes propôs que todo conhecimento começasse de volta, do zero, recusando todos os “argumentos de autoridade”, aquilo que o homem acreditava por tradição ou por imposição de alguma autoridade ou religião. Para perceber o impacto da idéia, basta saber que, depois de Descartes, o mundo passou a viver séculos de revoluções em várias áreas, botando abaixo tudo o que não resistia à dúvida, seja a idéia de que a Terra é o centro do Universo, seja a de que os reis são pessoas superiores. Para o historiador francês Alexis de Tocqueville, a Revolução Francesa, por exemplo, foi “feita por cartesianos que saíram das escolas e desceram à rua”. Se você usa uma camiseta com o Che Guevara, mude já a estampa: revolucionário mesmo foi Descartes e sua idéia de duvidar de tudo.

Cinismo: Doutrina de filosofia grega que considerava a honestidade o único requisito para a felicidade. Único, mas único mesmo: os cínicos eram filósofos-mendigões, ascetas radicais que não estavam nem aí para roupa, dinheiro, família, costumes, tradição e higiene. Viviam conforme a natureza, como cachorros vira-latas, e não apenas aceitaram o rótulo como tomavam o bicho como símbolo de sua idéia de virtude, daí o nome (do grego cyon, “cachorro”). Diógenes (412-323 a.C.), o maior dos cínicos, era realmente um morador de rua e teve várias histórias famosas: quando perguntaram a ele como resistir aos desejos da carne, ele se masturbou em público e disse: “Se ao menos eu pudesse matar minha fome esfregando a barriga...” Quando Alexandre, o Grande, perguntou a Diógenes se podia lhe fazer algum favor, o cínico respondeu: “Sim, saia da frente do meu sol”. A fama dura até hoje.

Conservador: Vá ao verbete “modernidade”. Foi? O contrário de ser moderno é ser conservador. Não se trata tanto de uma posição política, mas de outro jeito de olhar o ser humano. Se os modernos achavam que o homem pode ser melhorado se a sociedade mudar, os conservadores preferiam pensar como na Idade Média: que o homem é naturalmente mau, e a sociedade (a polícia, a hierarquia, a religião) serve para civilizá-lo, contê-lo. É por isso que, para os conservadores, uma mudança lenta e gradual é sempre preferível à revolução, que, para eles, deixam à solta a tendência destrutiva do homem. “É impossível estimar a perda que resulta da supressão dos antigos costumes e regras da vida”, escreveu no século 18 o inglês Edmund Burke. Os conservadores são o grupo mais fora de moda nos últimos séculos, mas, a favor deles, está o fato de que, como previram, da Revolução Francesa até as revoluções do século 20, não foram poucas as que acabaram em tragédia, opressão e assassinatos em massa.

Deus: Platonismo com rosto .

Dialética: Diálogo. É a arte de debater, argumentar e contra-argumentar. Sócrates foi o homem que estabeleceu o costume do diálogo nas rodas de intelectuais da Grécia. Por isso, muita gente o chama de pai da filosofia. Antes de Sócrates, valia mais a retórica, a arte do bem falar, do que os argumentos em si. Séculos depois, no século 18, “dialética” passou a significar uma dinâmica em que as coisas se sobrepõem, uma substituindo outra. Como quando as crianças, em círculo, colocam em seqüência as mãos, uma acima da outra.

Ética: Definir o que é certo e o que é errado. Simples, não? O problema é que a idéia de certo e errado muda sempre, dependendo de como enxergamos o mundo. Por exemplo: os gregos achavam que o homem deveria se integrar à harmonia do Cosmos. Por isso, usavam a natureza para saber o que era certo ou errado. Se, na natureza, havia hierarquia entre animais mais fortes que outros, então era muito bem aceitável que, entre os homens, houvesse escravidão. Já na Idade Moderna, quando o homem se considera superior à natureza, a escravidão torna-se, aos poucos, uma idéia absurda.

Epicurismo: Para Epicuro (340-270 a.C.), o ideal do bem é viver sem medo e sem dor, aproveitando o dia de hoje. “Quem menos sente a necessidade do amanhã mais alegremente se prepara para o amanhã”, diz Epicuro. Parece culto ao prazer, mas ele dizia também que, para viver bem, o jeito é se abster de grandes prazeres, evitando assim a frustração quando eles não puderem ser obtidos. Essas palavras fizeram muito sucesso na Roma antiga, quando o prazer falava acima de quase tudo.

Estoicismo: Diferentemente do epicurista, o estóico acredita que o mundo é governado por uma lógica divina, ou seja, Deus está no mundo e sua manifestação é a ordem das coisas. Assim sendo, o negócio é estar do lado da natureza, mesmo que isso possa implicar desconforto mental ou físico. O estoicismo prega que somente pelo desapego, ignorando dor e prazer, é que se descobre a verdade.

Hermenêutica: Interpretação de texto. É a parte da filosofia que pensa no que o autor realmente quis dizer com um discurso, um filme ou um evangelho escrito 2 mil anos atrás. Por exemplo: na Bíblia, o fato de os judeus serem os traidores de Jesus é encarado como uma estratégia para os evangelhos caírem no gosto dos romanos, que, na época, perseguiam os judeus.

Humanismo: Fenômeno que começou no século 16 e colocou o ser humano no centro do Universo. Se você já leu várias vezes essa explicação sem entender muito bem, tente pensar numa época antes do humanismo: a Idade Média. A vida humana então não tinha tanto valor quanto hoje: os filhos só eram batizados se persistissem em sobreviver, já que a maioria morria nos primeiros anos. A idéia de infância não existia – as crianças vestiam roupas de adultos e, nas obras de arte, eram representadas como adultos pequenos. Como os pintores trabalhavam por devoção a Deus, e não por um reconhecimento pessoal, muitas pinturas não eram assinadas. E a idéia de que Deus decidia tudo era tão forte que ninguém imaginava que poderia melhorar de vida, progredir por esforço próprio. Se você nascesse um camponês pobre, encararia isso como uma decisão divina, sem imaginar que poderia agir para ser diferente. Com o humanismo, o ser humano aos poucos virou o centro das atenções – pinturas (assinadas) do rosto de pessoas ficaram cada vez mais comuns, assim como o estudo do corpo humano e suas medidas (lembra-se daquele desenho do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci?). A idéia é de que quem determina o que é certo ou errado não é Deus nem as tradições, mas as pessoas e sua capacidade individual de pensar. Um exemplo é Maquiavel (1469-1527), autor de O Príncipe. Ele rejeitou a moral bíblica para que seu príncipe conquistasse um bem permanente pelas vias do mal passageiro – o famoso “os fins justificam os meios”. Também surge com o humanismo a idéia de que o ser humano pode trazer o céu à terra. Foi nessa época que o termo “utopia” foi inventado, pelo inglês Thomas Moore (1478-1535) – o livro Utopia descreve uma ilha em que tudo seria perfeito.

Imanência: Repare neste fragmento de Tales de Mileto: “Todas as coisas estão cheias de deuses”. Imanência é isso: a idéia de que Deus ou algum princípio divino, ou qualquer ideal, está aqui, entre nós, presente no mundo, nas leis da física, nas pessoas, nos seres vivos e talvez em todas as coisas. Por isso, para os gregos da época de Tales, era preciso abrir os olhos para o mundo, ou seja, apreciar a ordem natural das coisas, a harmonia da natureza. Não é à toa que a palavra teoria vem do grego to theion, ou “eu vejo o divino”. E que os filósofos dessa época, como Tales, se dedicaram a estudar os princípios da natureza, como na geometria .

Iluminismo: Nos séculos 16 e 17, as pessoas se sentiam perdidas no escuro. As descobertas científicas de Newton, Kepler e Galileu derrubaram a idéia de que o mundo era uma coisa pronta e ordenada por Deus. Começamos a olhar o Universo como um lugar sem ordem, em que forças da física a todo momento se debatem. Então, o que fazer? Iluminar-se, criar uma ordem para o mundo. É o que propõem os filósofos da época, principalmente Emmanuel Kant , com o livro Crítica da Razão Pura. Por meio da ciência, da razão, o ser humano passou a tentar a explicar o mundo e catalogá-lo – vêm daí os primeiros museus e disciplinas científicas.

Modernidade: Pegue os verbetes humanismo, cartesiano e iluminismo e misture-os bem. Modernidade são os últimos 5 séculos, época em que o ser humano começou a se achar o centro do mundo, passou a usar a razão para conhecer o mundo e a acreditar que a mudança, o progresso, conduz a uma coisa melhor que o passado. O espírito da modernidade é a idéia de que a ciência – todas as ciências, da psicologia à arquitetura – pode melhorar a sociedade e até mexer com a alma humana, melhorando o próprio homem.

Materialismo: Lembra-se do Kléber Ban-Ban, aquele do Big Brother que dizia “faz parte” a toda hora? Materialismo é acreditar que o sonho acabou e, como faz o ex-BBB, dar de ombros aos problemas da vida. Literalmente, é acreditar na matéria, amar o mundo tal como ele é. O materialista não tem utopias, tenta esperar pouco da vida. “Esperar é desejar sem fruir, sem saber e sem poder”, afirma o filósofo André Comte-Sponville, a voz do materialismo no século 20. O problema do materialismo contemporâneo é: como amar a realidade em momentos como o genocídio de Ruanda sem dizer “faz parte” ou recorrer a utopias?

Metafísica: O nome certo era para ser “primeira filosofia”, como Aristóteles a chamava. Mas, quando o filósofo Andrônico de Rhodes foi organizar os livros de Aristóteles na biblioteca de Alexandria, simplesmente colocou esses volumes à direita da “física” aristotélica e escreveu: “os livros que vêm depois da física”. Os romanos entenderam tudo errado: achavam que a tal “metafísica” era o estudo das coisas “além do mundo físico” – em outras palavras, coisas inventadas, como os deuses. Na verdade, é a metafísica que faz as perguntinhas mais amplas, tipo “quem somos, de onde viemos?”

Niilismo: É negar a realidade, dizer não ao mundo real em prol da imaginação de um mundo perfeito, de um ideal transcendente, do “nada” – que em latim é nihil. Os niilistas proliferaram no século 19, com as grandes ideo­logias políticas, e seu maior inimigo foi Friedrich Nietzsche . Pense com ele: depois da modernidade, quando deixamos de explicar o mundo por atos de Deus, tivemos de arranjar outros ídolos, outros ideais sublimes para dar à vida uma sensação de eternidade. Em vez do paraíso da Bíblia, o novo ideal virou o nacionalismo, o cientificismo (pensar que a ciência resolveria todos os problemas do homem) ou o comunismo. Nietzsche chega a tratar o comunismo como uma religião, com apenas uma diferença do cristianismo: atribuir nossos problemas aos outros ou a nós mesmos – “a primeira coisa faz o socialista, a segunda o cristão”, afirma ele em Crepúsculo dos Ídolos. Niilismo também significa achar que nada tem valor – que não há motivos para respeitar tradições, leis ou princípios morais. É a perigosa idéia de que “se Deus não existe, então não há crime, não há pecado; tudo é permitido”, como diz um personagem do livro Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, outro grande crítico do niilismo.

Platonismo: Ver o mundo em duas partes. Platão (427-347 a.C.) dividia o mundo em dois: para ele, antes das coisas reais, do mundo real em que vivemos, existem as idéias das coisas, que são eternas e vivem no “mundo das idéias”. Esse mundo das idéias seria o único de fato verdadeiro; e este aqui, em que vivemos, seria uma sombra, uma ilusão. Platão também acreditava na imortalidade da alma, que, de vez em quando, era aprisionada em corpos humanos. O platonismo lembra muito uma religião, não? Pois é exatamente a visão de mundo de Platão que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo se apropriaram. Séculos depois de Platão, suas idéias se misturaram com crenças judaicas, que deram ao mundo das idéias uma cara, uma forma de pessoa: Deus.

Pós-Modernidade: Sabe alguém que não gosta de usar celular, toma remédio de homeopatia e, nas férias, percorreu a pé o Caminho de Santiago? Pois eis aí um belo pós-moderno. Na teoria, o pós-modernismo é uma recusa à modernidade, uma desconfiança dos valores do iluminismo. Na prática, ele aparece em toda parte, principalmente como uma recusa às grandes correntes . Em vez das grandes religiões tradicionais, doutrinas orientais como o budismo. Na moda, é aquela camiseta única, cuja estampa você mesmo inventou. Na arquitetura: em vez dos prediões de linhas retas e funcionais do começo do século 20, linhas curvas. E até no turismo: em vez do pacotão da CVC, uma experiência única, como fazer o Caminho de Santiago ou percorrer a França de bicicleta .

Transcendência: contrário da imanência, é a idéia de que Deus é algo separado do mundo (ou seja, “transcende” a ele) e que o mundo segue por sua própria conta as regras criadas por Ele. Depois dos livros de Kant, transcendência passou a significar também pensar não nas coisas em si, mas na relação entre as coisas como elas são vistas e o que existe de fato. Ou seja, “transcender” o senso comum não filosófico, atingir a verdade por trás das coisas.

Verdade: O objetivo final da filosofia – apesar de que, para alguns filósofos, acreditar na verdade é cair num grande mal-entendido. Ou não.

Notas
1. Dormia pelado e fumava maconha para se inspirar.
2. Calma, a gente explica: veja o verbete platonismo.
3. Prova dessa mudança de valores é a Declaração Universal dos Direitos do Homem: conceito básico hoje em dia, ela demorou até 1789 para surgir.
4. Filosofava com os amigos no jardim de casa, enquanto sua mãe praticava magia.
5. Se hoje você acredita que o que é natural é melhor do que o artificial, que alimentos orgânicos são melhores que os industrializados, agradeça aos gregos por essa crença.
6. Morreu solteiro e, dizem, virgem.
7. Odiava o cunhado, que queria levar sua irmã para morar no Paraguai.
8. Na pós-modernidade, não existe uma verdade única, que vale para todos, como no iluminismo. Vem daí a idéia de relativismo cultural, de que é impossível julgar culturas diferentes, como as tribos amazônicas que sacrificam bebês.
9. Por isso, se você quer ganhar dinheiro em tempos pós-modernos, ofereça às pessoas uma experiência diferente – como um city tour de bicicleta pela madrugada ou chinelos com dezenas de opções de cores.
"Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores que vemos não passam de ilusões e enganos de que ele [um deus enganador] se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, como não tendo nenhum dos sentidos, mas acreditando falsamente possuir todas essas coisas. Perma­necerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse medo, não estiver em meu poder atingir o conhecimento de nenhuma verdade, pelo menos estará em meu poder fazer a suspensão de meu juízo. [...] Posso duvidar de tudo, mas tenho certeza de que estou aqui, pensando, duvidando. Sou uma coisa que duvida, que pensa."
RENÉ DESCARTES, MEDITAÇÕES METAFÍSICAS
"É injusto que se apeguem a mim, embora o façam com prazer e voluntariamente. Eu iludiria aqueles em quem despertasse desejo, pois não sou o fim de ninguém e não tenho com o que satisfazê-Ios. Não estou eu pronto a morrer? E, assim, o objeto do apego dessas pessoas morrerá. Logo, quando não seria eu culpado por fazer crer numa falsidade, embora eu a adoçasse e acreditasse nela com prazer, e que ela me desse prazer, ainda assim sou culpado de me fazer amar. E, se atraio as pessoas para que se apeguem a mim, devo advertir aqueles que estariam prontos a consentir na mentira de que não devem acreditar, qualquer que seja a vantagem que daí me advenha."
BLAISE PASCAL, PENSAMENTOS
"Viver significa ter de ser fora de mim, no absoluto fora que é a circunstância ou mundo: é ter de, querendo ou não, enfrentar-me e chocar-me, constantemente, inces­san­temente com tudo que integra esse mundo: minerais, plantas, animais, os outros homens. Não há remédio. Tenho de atracar-me com isso tudo. Tenho de me ajustar com tudo isso. Mas isso acontece ultimamente a mim só, e tenho de fazê-lo solitariamente."
JOSÉ ORTEGA Y GASSET, O HOMEM E A GENTE
"Todos os célebres ideais da política, da moral e da religião são apenas ídolos, inchaços metafísicos, ficções que não visam nada a não ser fugir da vida, antes de se voltar contra ela."
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Ateus divulgam Carta Aberta ao presidente Lula

A ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) divulgou a partir de seu site na internet uma Carta Aberta ao presidente Lula criticando recentes declarações dele sobre a questão religiosa.

Na carta, os ateus defendem que "somente um estado verdadeiramente laico pode trazer liberdade religiosa verdadeira, através da igualdade plena entre religiosos de todos os matizes, assim como entre religiosos e não-religiosos de todos os tipos, incluindo ateus e agnósticos".

Veja abaixo a íntegra do documento:

Carta aberta dos ateus ao presidente Lula

Caro presidente


o senhor chegou ao poder carregado pela bandeira de uma sociedade mais justa e mais inclusiva. O uso da palavra "excluídos" no vocabulário das políticas públicas tem o mérito de nos lembrar que as conquistas de nossa sociedade devem ser estendidas a todos, sem exceção. Sim, devemos incluir os negros, incluir as mulheres, incluir os miseráveis, incluir os homossexuais. Mas, presidente, também é preciso incluir ateus e agnósticos, e todos os demais indivíduos que não têm religião.

Infelizmente, diversas declarações pessoais suas, assim como políticas do seu governo, têm deposto em contrário. Ontem mesmo o senhor afirmou que há "muitos" ateus que falam sobre a divindade da mitologia cristã quando estão em perigo. Ora, quando alguém diz "viche", é difícil imaginar que esteja pensando em uma mulher palestina que se alega ter concebido há mais de dois mil anos sem pai biológico. Com o tempo, algumas expressões se cristalizam na língua e perdem toda a referência ao seu significado estrito. Esse é o caso das interjeições que são religiosas em sua raiz, mas há muito estão secularizadas. Se valesse apenas a etimologia, não poderíamos nem falar "caramba" sem tirar as crianças da sala.

Sua afirmação é a de quem vê “muitos” ateus como hipócritas ou autocontraditórios, pessoas sem força de convicção que no íntimo não são descrentes. Nós, membros da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, não temos conhecimento desses ateus, e consideramos que essa referência a tantos de nós é ofensiva e preconceituosa. Todos os credos e convicções têm sua generosa parcela de canalhas e incoerentes; utilizar os ateus como exemplo particular dessas características negativas, como se fôssemos mais canalhas e mais incoerentes, é uma acusação grave que afronta a nossa dignidade. E os ateus, presidente, também têm dignidade.

Duas semanas atrás, o senhor afirmou que a religião pode manter os jovens longe da violência e delinqüência e que “com mais religião, o mundo seria menos violento e com muito mais paz”. Mas dizer que as pessoas religiosas são menos violentas e conduzem mais à paz é exatamente o mesmo que dizer que as pessoas menos religiosas são mais violentas e conduzem mais à guerra. Então, presidente, segundo o senhor, além de incoerentes e hipócritas, os ateus são criminosos e violentos? Não lhe parece estranho que tantos países tão violentos estejam tão cheios de religião, e tantos países com frações tão altas de ateus tenham baixíssimos índices de criminalidade? Não é curioso que as cadeias brasileiras estejam repletas de cristãos, assim como as páginas dos escândalos políticos? Algumas das pessoas com convicções religiosas mais fortes de que se tem notícia morreram ao lançar aviões contra arranha-céus e se comprazeram ao negar o direito mais básico do divórcio a centenas de milhões de pessoas. Durante séculos.

O mundo realmente tinha mais paz e menos violência quando havia mais religião? O despotismo dos soberanos católicos na Europa medieval e a crueldade dos feitores e senhores de escravos no Brasil-colônia vieram de pessoas religiosas em um mundo amplamente religioso que violentava povos e mentes em nome da religião. O mundo não tinha mais paz nem menos violência naquela época, como o sabem muito bem os negros e índios.

Não eram católicos os generais da ditadura contra a qual o senhor lutou, e o seu exército de torturadores? Não haveria um crucifixo nas paredes do DOPS onde o senhor foi preso? A base dos direitos individuais invioláveis pela qual o senhor tanto lutou são as democracias modernas, seculares e laicas, e não os regimes religiosos. Tanto a geografia como a história dão exemplos claros de que mais religião não traz mais paz nem menos violência.

A prática de diminuir, ofender, desumanizar, descaracterizar e humilhar grupos sociais é antiga e foi utilizada desde sempre para justificar guerras, perseguição e, em uma palavra, exclusão. Presidente, por que é que o senhor exclui a nós, ateus, do rol de indivíduos com moralidade, integridade e valores democráticos?

No Brasil, os ateus não têm sequer o direito de saberem quantos são. O Estado do qual eles são cidadãos plenos designa recenseadores para ir até suas casas e lhes perguntar qual é sua religião. Mas se dizem que são ateus ou agnósticos, seus números específicos lhes são negados. Presidente, através de pesquisas particulares sabemos que há milhões de ateus no país, mas o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que publica os números de grupos religiosos que têm apenas algumas dezenas de membros, não nos concede essa mesma deferência. Onde está a inclusão se nos é negado até o direito de auto-conhecimento? Esse profundo desrespeito é um fruto evidente da noção, que o senhor vem pormenorizando com todas as letras, de que os ateus não merecem ser cidadãos plenos.

Presidente, queremos aqui dizer para todos: somos cidadãos, e temos direitos. Incluindo o de não sermos vilipendiados em praça pública pelo chefe do nosso Estado, eleito com o voto, também, de muitos ateus, que agora se sentem traídos.

Presidente, não podemos deixar de apontar que somente um estado verdadeiramente laico pode trazer liberdade religiosa verdadeira, através da igualdade plena entre religiosos de todos os matizes, assim como entre religiosos e não-religiosos de todos os tipos, incluindo ateus e agnósticos. Infelizmente, seu governo não apenas tem sido leniente com violações históricas da laicidade do Estado brasileiro, como agora espontaneamente introduziu o maior retrocesso imaginável nessa área que foi a assinatura do acordo com a Sé de Roma, escorado na chamada lei geral das religiões.

Ambos os documentos constituem atentado flagrante ao art. 19 da Constituição Federal, que veda “relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas”. E acordos, tanto na linguagem comum como no jargão jurídico, são precisamente isso: relações de aliança. Laicidade, senhor presidente, não é ecumenismo. O acordo com Roma já era grave; estender suas benesses indevidas a outros grupos não diminui a desigualdade, apenas a aumenta. Nós não queremos privilégios: queremos igualdade e o cumprimento estrito da lei, e muitos setores da sociedade, religiosos e laicos, têm exatamente esse mesmo entendimento.

Além de violar nossa lei maior, a própria idéia da lei geral das religiões reforça a política estatal de preterir os ateus sempre e em tudo que lhes diz respeito como ateus. Com que direito o Estado que também é nosso pode ser seqüestrado para promover qualquer religião em particular, ou mesmo as religiões em geral? Com que direito os religiosos se apossam do dinheiro dos nossos impostos e do Estado que também é nosso para promover suas crenças particulares? Religião não é, e não pode jamais ser política pública: é opção privada.

O Estado pertence a todos os cidadãos, sem distinção de raça, cor, idade, sexo, ideologia ou credo. Nenhum grupo social pode ser discriminado ou privilegiado. Esse é um princípio fundamental da democracia. Isso é um reflexo das leis mais elementares de administração pública, como o princípio da impessoalidade. Caso aquelas leis venham de fato integrar-se ao nosso ordenamento jurídico, os ateus se juntarão a tantos outros grupos que irão ao judiciário para que nossa realidade não volte ao que era antes do século retrasado.

Presidente, por tudo isso será que os ateus não merecem inclusão sequer em um pedido de desculpas?


Fonte: Jornal A Hora

PT decide dia 17 se expulsa deputados anti-aborto

Diretório nacional fará reunião para julgar se Luiz Bassuma (BA) e Henrique Afonso (AC) devem deixar o partido por defenderem princípios contrários a duas resoluções aprovadas pelos militantes. O julgamento vai confrontar convicções religiosas com bandeiras históricas das mulheres petistas

O Partido dos Trabalhadores decide na próxima semana se expulsa, adverte, suspende ou mantém na legenda dois deputados que são abertamente contrários à legalização do aborto, uma das bandeiras assumidas pelo partido do presidente Lula durante encontro nacional de militantes. O relatório da Comissão de Ética sobre a situação dos petistas Henrique Afonso (AC) e Luiz Bassuma (BA) ainda não está pronto.

O documento deve ser concluído até a manhã do dia 17 de setembro, quando os 81 membros do Diretório Nacional do PT se reúnem em Brasília para votarem as recomendações da Comissão de Ética do partido. A reportagem procurou o presidente do partido, deputado Ricardo Berzoini (SP), mas ele não retornou os recados deixados.
Segundo a Secretaria de Mulheres do PT, Bassuma e Henrique Afonso descumprem uma resolução partidária, aprovada em 2007, que defende a "defesa da autodeterminação das mulheres, da descriminalização do aborto e regulamentação do atendimento a todos os casos no serviço público, evitando assim a gravidez não desejada e a morte de centenas de mulheres, na sua maioria pobres e negras, em decorrência do aborto clandestino e da falta de responsabilidade do Estado no atendimento adequado às mulheres que assim optarem".

Outra resolução, do 10º Encontro Nacional de Mulheres do PT, realizado em 2008, defende que sejam expulsos os militantes "que não acatarem e não respeitarem as resoluções partidárias relativas aos direitos e à autonomia das mulheres". O texto determina a retirada de projetos de lei que “prejudiquem o direito das mulheres de autonomia sobre seu corpo e sua sexualidade”.

Liberdade de expressão

Bassuma e Henrique Afonso dizem que suas convicções pessoais têm que ser aceitas porque isso significa garantir a liberdade de expressão e o direito à vida, previsto na Constituição. No ano passado, o Congresso em Foco procurou petistas a favor e contra o direito ao aborto em qualquer situação. Todos disseram que não há motivo para expulsão dos que agem por convicções pessoais ou “de foro íntimo”.

Na Constituinte de 1988, o PT decidiu não tomar posições partidárias de caráter íntimo. "Lembro até que o Plínio de Arruda Sampaio, hoje no Psol, era contra o aborto. Não cabe fechamento de questão", afirma o senador Paulo Paim (PT-RS), defensor do direito ao aborto.

Historicamente, a esquerda teve relacionamento conflituoso com as religiões, embora em muitos momentos tenham caminhado juntas. Setores progressistas da igreja católica e de várias outras crenças tiveram papel decisivo, por exemplo, na luta contra a ditadura, na formação e no crescimento do PT.

Mas, para Karl Marx, a religião era o “ópio do povo”. Na prática, temas como aborto, relações homossexuais e uso de células-tronco opuseram crentes e esquerdistas.

Ameaçado de expulsão, o deputado Luiz Bassuma entende que os problemas entre a religião e a esquerda decorrem de visões de mundo antagônicas. “Predomina nos partidos de esquerda uma visão de mundo mais materialista. A minha é espiritualista”, diz o deputado, que é espírita kardecista.

O deputado Gilmar Machado (PT-MG) acredita que Marx confundiu religião e Deus. “Ele cometeu alguns equívocos porque não conheceu Jesus e a Bíblia”, disse o vice-líder do governo no Congresso, que é evangélico.

Explicações

O senador Flávio Arns (PR) – que deixou o PT porque a legenda decidiu não apoiar as investigações contra o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP) – já teve que prestar explicações aos eleitores sobre temas espinhosos que mostrariam incoerência entre suas convicções e o programa do partido.

Os eleitores queriam saber por que ele estava numa legenda que tinha decidido apoiar o aborto. “Me causou muito mal-estar. Eu tive de dizer que, quando ingressei no PT, isso não fazia parte do programa”, conta Arns, católico e sobrinho do bispo dom Paulo Evaristo Arns e da coordenadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns.

Os deficientes físicos também reclamaram do senador quando ele votou contra o uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas científicas. “Os eleitores acham que esse é o caminho para a cura. Mas eu expliquei que as células-tronco adultas apresentam resultados muito melhores que as embrionárias”, disse Arns.

O senador já recebeu um convite do Psol para engrossar a bancada do partido. Está analisando. O Psol é favorável ao direito ao aborto, apesar de sua presidente nacional, a vereadora Heloísa Helena, ser contra.

Fonte: Congresso em Foco

Casamento homossexual divide parlamentares religiosos de esquerda

Se contra o aborto praticamente há uma unanimidade entre os religiosos de esquerda, as temáticas sobre os homossexuais dividem essa bancada. Há os que defendem todos os pleitos de gays, lésbicas e travestis e há os que têm restrições em diversos pontos.

Favorável à união civil dos homossexuais e até à adoção de crianças por eles, caso isso seja comprovado por psicólogos, o senador paranaense Flávio Arns é contra o projeto de lei com o objetivo de criminalizar a homofobia. Ele diz que, na verdade, a proposta acaba com o direito à crítica e considera discriminação qualquer restrição a atos amorosos em público.

O senador católico acredita que os parceiros gays e lésbicas devem ter todos os direitos fundamentais, como pensão e herança. Concordam com ele o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) e o deputado Mauro Nazif (PSB-RO), filho de palestino, mas também católico.

Porém, Mauro Nazif discorda do chamado “casamento gay”, matrimônio celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo. O evangélico Gilmar Machado (PT-MG) também. “A Bíblia diz que o casamento foi feito para macho e fêmea.”

Machado se posiciona pessoalmente contra a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo, mas destaca que a lei não proíbe a atitude. “Não existe para mim casal homossexual”, explica.

Sem discussão por lei

Inácio Arruda diz que aborto e temáticas homossexuais não são fundamentais para o país, como saúde e educação. “Com isso nunca me preocupei. Será que esse é o problema central nosso? E emprego, educação e saúde?”, questiona o senador do PCdoB.

Outro a defender que não devem ser feitas leis sobre esses assuntos é o evangélico Walter Pinheiro (PT-BA). “As pessoas estão querendo transformar coisas de foro íntimo em amarras, em legislação”, diz ele, atualmente licenciado por ser o secretário de Planejamento da Bahia.

Pinheiro tem o seguinte raciocínio: o Estado deve usar o princípio Constitucional de defender a vida. Assim, não pode, por exemplo, ser negado tratamento médico a uma mulher que esteja sofrendo em decorrência de aborto. “Não dá para perguntar se o aborto foi provocado na casa dela ou se era espontâneo. Tem que ser atendida”, diz. O deputado licenciado acredita que as clínicas de aborto clandestino devem ser combatidas pelo Ministério da Saúde.

E reforça que não é necessária nenhuma lei a mais sobre a união civil e a adoção por homossexuais. Pinheiro diz que os problemas de herança, pensão e patrimônio são resolvidos com a legislação atual e com as decisões da Justiça. E que a adoção das crianças por gays e lésbicas já é permitida, apesar de ele ser pessoalmente contra.

“Sou contra porque a criança tem um curso natural interrompido”, diz Pinheiro. Bassuma vai além: “Acho que é, para a criança, um processo psicológico muito sério. As crianças têm um modelo de pai e mãe. Elas vão ter um prejuízo em sua formação psicológica. A sociedade é uma coisa e o lar delas será outra”, diz o deputado.

Fonte: Congresso em Foco

Jerusalém o centro do mundo

Como uma cidade do tamanho de João Pessoa pode se manter no centro dos assuntos mais relevantes do planeta por 4 mil anos? Para judeus, cristãos e árabes, a resposta passa tanto pela história quanto pelos mitos

por Texto Eduardo Szklarz
O grito de guerra ecoou nas pedras crispadas pelo sol naquele setembro de 1187: Alá-hu akbar! (“Deus é grande!”). Sob o comando do sultão Saladino, o exército muçulmano celebrava sucessivas conquistas na Galiléia e agora marchava rumo ao objetivo máximo: Jerusalém. A missão era recuperar a cidade santa após 88 anos de domínio dos cruzados. Saladino montou acampamento no monte das Oliveiras e avistou a enorme cruz no topo da Cúpula do Rochedo, um dos tantos santuários islâmicos profanados pelos infiéis. As tropas inimigas logo se renderam, e no dia 2 de outubro Saladino entrou triunfante na cidade murada. Ele tolerou a permanência dos cristãos, permitiu a volta dos judeus que haviam sido expulsos e purificou o solo de Jerusalém segundo os preceitos do islã.
Em julho de 2000, uma multidão se reuniu nas ruas de Gaza gritando vivas ao “novo Saladino”: um velhinho de voz trêmula e corpo arqueado. Tratava-se do palestino Yasser Arafat, que voltava da conferência de paz de Camp David, nos EUA. Lá ele havia rejeitado a proposta de divisão de Jerusalém oferecida pelo primeiro-ministro israelense Ehud Barak e pelo presidente americano Bill Clinton. Agora, fazendo o V da vitória, Arafat era glorificado nas ruas como a reencarnação do herói que tomou a cidade dos cruzados em 1187.
Histórias como essas ajudam a explicar por que Jerusalém se mantém por tanto tempo no centro do mundo. Em nenhum outro lugar o passado reverbera no presente de maneira tão profunda. Sempre escutamos que a cidade é sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, mas essa é apenas uma parte da história. Segundo vários pesquisadores, Jerusalém só alcançou importância global porque seu caráter sagrado vem sendo utilizado como propaganda política. Templos, batalhas e personagens (reais ou imaginários) podem ficar esquecidos durante milênios... e, de repente, ressurgir com força total para legitimar uma nova ideologia, um carro-bomba ou um míssil teleguiado.
Arafat não foi o único a evocar a simbologia de Jerusalém para atrair adeptos. Osama bin Laden, líder da Al Qaeda, e Hassan Nasrallah, chefe do Hezbollah, também usam a figura de Saladino ao pregar a jihad contra o Ocidente. O ex-premiê israelense Ariel Sharon gostava de aludir à memória dos guerreiros macabeus, símbolos da resistência judaica contra o império selêucida, em 167 a.C. O ex-presidente iraquiano Saddam Hussein se proclamou sucessor de Nabucodonosor, rei da Babilônia, que destruiu o Templo de Salomão em 586 a.C. e mandou os judeus para o exílio. O presidente americano George W. Bush seguiu a mesma receita quando usou a palavra “cruzada” para lançar a guerra contra o terrorismo.
Não é à toa que a Cidade Dourada – que hoje tem uma população aproximada de 700 mil habitantes, equivalente à de João Pessoa (PB), Campo Grande (MS) ou Santo André (SP) – tem sido a mais disputada da história. “Nos últimos 4 mil anos, houve pelo menos 118 conflitos por Jerusalém. Ela foi 2 vezes destruída, 23 vezes sitiada, 52 vezes atacada e 44 vezes capturada e recapturada, por tribos ou exércitos de impérios”, diz o historiador Eric Cline, autor de Jerusalem Besieged (“Jerusalém Sitiada”, sem tradução no Brasil). Nesta reportagem, vamos reconstruir a história da cidade para tentar entender por que o passado, o presente e o futuro da humanidade passam por ali.

Os primórdios
Na hora de defender seus direitos sobre Jerusalém, os líderes de hoje usam dois argumentos principais: seus antepassados chegaram lá primeiro e sua ligação com a cidade é a mais autêntica. E, claro, negam as versões dos outros. Os palestinos não aceitam as evidências arqueológicas do reino judaico fundado por Davi há 3 mil anos. Os israelenses acham absurda a história de que Maomé subiu ao céu a partir de lá – motivo da devoção islâmica à cidade. Há controvérsia até entre os pesquisadores, pois a fonte de muito do que se afirma sobre Jerusalém são textos sagrados, não documentos históricos.
“Para muita gente, certas histórias sobre Jerusalém não passam de mitos. Mas não devemos descartá-las por isso. A questão de Jerusalém é explosiva exatamente porque a cidade adquiriu status mitológico”, diz a historiadora britânica Karen Armstrong, autora de Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões. Aí é que mora o problema: se você acredita que Deus lhe deu uma terra, vai ser difícil dividi-la. “É quase impossível falar da cidade de maneira racional”, diz o jornalista americano Richard Zimler, especialista em religiões comparadas.
Afinal, quem chegou primeiro à cidade? Ninguém sabe. Cerâmicas encontradas em tumbas do monte Ofel, ao sul das atuais muralhas da Cidade Velha, sugerem que o local já era habitado em 3200 a.C. Nessa época, teriam surgido as primeiras cidades em Canaã (região que hoje englobaria Israel, Gaza, Cisjordânia e partes da Jordânia, da Síria e do Líbano). Como ficava sobre um platô de difícil acesso, distante dos portos do Mediterrâneo, Jerusalém foi durante muito tempo uma ilustre desconhecida. No século 19 a.C., porém, ela chamou a atenção dos faraós do Egito – sabemos disso graças aos Textos de Execração, em que os egípcios listavam as cidades e governantes inimigos.
Jerusalém teria se tornado um núcleo urbano um século mais tarde, quando provavelmente estava nas mãos dos cananeus. Em algum momento depois disso (não se sabe ao certo quando), a cidade foi conquistada pela tribo dos jebusitas.
No século 13 a.C, outro povo entrou em cena: os israelitas, descendentes de Abraão. Segundo a Bíblia, Abraão nasceu na Mesopotâmia e emigrou para Canaã atendendo a um chamado divino – daí ser conhecido como o primeiro hebreu (“o que vem do outro lado”). Os israelitas haviam sido escravizados no Egito. Liderados por Moisés, escaparam e viveram como nômades na península do Sinai até alcançar Canaã, que lhes havia sido prometida por Deus.
Os israelitas formaram dois reinos em Canaã: um ao norte (Israel) e outro ao sul (Judá, nome de uma das 12 tribos israelitas). Por volta do ano 1000 a.C., o rei Davi unificou os reinos e, para agradar a ambos, escolheu governar de uma cidade neutra: Jerusalém. Só faltava conquistá-la.
Assim, depois de várias tentativas, Davi tomou a fortaleza jebusita. Seu exército entrou pelo norte da cidade, mais vulnerável, já que os outros lados eram protegidos naturalmente por barrancos. “Como a topografia não mudou muito nos séculos seguintes, a mesma tática seria usada por conquistadores babilônios, gregos, romanos, cruzados, otomanos, ingleses, árabes e israelenses”, diz Eric Cline.
Segundo a tradição judaica, Davi levou para Jerusalém a Arca da Aliança, onde estavam guardadas as tábuas dos Dez Mandamentos. Seu filho, o rei Salomão, completou a empreitada construindo um templo para Javé, Deus de Israel, no topo do monte Sião. Jerusalém saía da periferia para se tornar o centro do judaísmo. Mais do que isso, ela passou a simbolizar o lugar de Deus na Terra – um único Deus, tal como dizia o patriarca Abraão.
Três mil anos se passaram, mas essas histórias continuam fundamentais para entender as disputas pela soberania de Jerusalém. Os israelenses todo ano festejam a conquista de Davi como o marco zero da fundação da cidade – embora ela já existisse muito antes. Os palestinos não fazem por menos. Em outubro de 1999, Faisal Husseini, ex-ministro da Autoridade Palestina e homem de confiança de Arafat, declarou que era descendente dos jebusitas, que chegaram a Jerusalém antes de Davi. Esse tipo de argumento também não tem base histórica, já que os palestinos modernos fazem parte do povo árabe, e os árabes chegaram a Jerusalém no século 7 depois de Cristo – e 16 depois de Davi. Porém, ele é extremamente eficiente na hora de conseguir adeptos nas ruas.
Da Babilônia a Roma
A cidade dos israelitas foi chamada Ierushalaim – hebraico para “cidade da paz”. Mas paz é o que ela menos tem visto. Com a morte de Salomão, o reino foi sacudido por conflitos internos até se tornar uma mera zona de separação entre a Mesopotâmia e o Egito. No fim do século 7 a.C., virou alvo da disputa entre egípcios e assírios. Mas quem levou a melhor foram os babilônios: em 586 a.C., o rei Nabucodonosor destruiu o templo e mandou milhares de judeus ao exílio na Babilônia.
Em 538 a.C, houve uma nova reviravolta. O rei persa Ciro derrotou os babilônios e uniu a maior parte do Oriente Médio num só Estado, que ia da Índia ao Mediterrâneo. Ele transformou Judá numa província persa (que passou a ser conhecida como Judéia) e permitiu que os israelitas voltassem a Jerusalém. Agora eles já eram chamados de judeus, mesmo que não pertencessem à tribo de Judá.
Aqueles fatos ainda repercutem. Nos anos 1980, o governo iraquiano promoveu o festival cultural De Nabucodonosor a Saddam Hussein, no qual o presidente anunciou as façanhas do rei babilônio como modelo para sua estratégia no Oriente Médio. Saddam inclusive distribuiu uma foto sua ao lado de uma réplica da carroça usada por Nabucodonosor.
Com a conquista de Jerusalém pelos persas, em 538 a.C., os judeus recons­truíram o templo e retomaram seus cultos. A vida tranqüila só chegou ao fim 200 anos depois, com a derrota dos persas para o macedônio Alexandre, o Grande, que colocou a Judéia em contato com a cultura grega. Após a sua morte, Jerusalém caiu na disputa de duas dinastias gregas rivais: os selêucidas e os ptolomeus.
Em 200 a.C., Antíoco, rei dos selêucidas, finalmente pôs os ptolomeus para correr e mudou o nome da cidade para Antioquia da Judéia. Ele desfigurou o templo e o dedicou ao deus grego Zeus. “Antíoco proibiu a prática do judaísmo. Foi a primeira perseguição religiosa da história”, diz Karen Armstrong. A reação foi arquitetada pelo sacerdote Matatias, da seita judaica dos asmoneus. Conhecidos como macabeus, os revoltosos combateram os conquistadores por 16 anos. Em 141 a.C., eles destruíram a fortaleza selêucida e instalaram um reino independente – o último Estado judeu que existiria por lá até a recriação de Israel, em 1948.
Por isso, a revolta dos macabeus teve uma profunda repercussão no mundo moderno. Ela inspirou a criação do movimento sionista, no século 19, que pregava a volta dos judeus a Sion (Jerusalém) para restaurar ali o seu lar nacional. No livro O Estado Judeu, de 1896, o líder sionista Theodor Herzl dizia: “Uma maravilhosa geração de judeus vai surgir. Os macabeus vão se erguer outra vez”.
Por ironia, o governo dos asmoneus abriu ainda mais espaço à cultura grega e enfezou outras facções judaicas, principalmente os fariseus e os essênios. A luta entre esses grupos atraiu a atenção de Roma, os EUA da época. Em 63 a.C., o general romano Pompeu tomou Jerusalém e, para variar, profanou o templo. “Seus soldados cortaram a garganta dos que estavam no altar”, escreveu o historiador Flavio Josefo, contemporâneo desses fatos, no livro Antiguidades Judaicas.
A idéia inicial dos romanos era resolver a disputa de poder na Judéia. Mas eles resolveram ficar e exercer o governo, sem perceber o lodaçal em que estavam afundando. Havia movimentos de revolta contra o invasor, disputas entre as facções judaicas, outros invasores aproveitando o pandemônio e – não menos importante – as brigas internas na sede do império (nesse ínterim, Júlio César tomou o poder de Pompeu, foi traído pelos senadores e assassinado). A Judéia vivia o caos, e o poder em Jerusalém trocava de mãos com freqüência extraordinária. Até que Herodes, filho de um líder local apoiado por setores romanos, fugiu para Roma e convenceu os senadores de que era o sujeito certo para governar a província. Em 40 a.C., obteve deles o título de “rei dos judeus” e voltou para a Judéia no ano seguinte.
No ano 37 a.C., Herodes conquistou Jerusalém. Seu governo sanguinário deixou pelo menos uma benfeitoria: a restauração do templo dos judeus, que na época já tinha 500 anos. Esse ficou conhecido como o Segundo Templo – embora, na prática, fosse o terceiro.
A revolução de Jesus
Poucos anos depois, o santuário sofreu nova ameaça. Comandada por um homem montado num jumento, uma pequena procissão desceu o monte das Oliveiras, atravessou o vale do Cedron e entrou em Jerusalém aos brados de “Salva-nos, filho de Davi!” O homem era Jesus, um profeta judeu da Galiléia. Ele rumou para o templo e usou um tipo de chicote para espantar os cambistas e vendedores de pombos.
“Jesus não protestava contra o comércio no espaço sagrado. Essa gente era essencial para as atividades de qualquer templo antigo”, diz Karen. Segundo a historiadora, o episódio poder ter sido a demonstração física de uma profecia: não iria sobrar pedra sobre pedra naquela sociedade submissa aos emissários de Roma. Qualquer que fosse sua intenção, a performance no templo foi uma clara afronta à autoridade, do tipo que não passaria impune.
Segundo a Bíblia, o procurador romano Pôncio Pilatos condenou Jesus à morte e o obrigou a carregar uma cruz pelas ruas de Jerusalém até o monte Gólgota, ou lugar da Caveira (Calvarius, em latim), onde foi crucificado. Aquele devia ser o final da história, mas logo surgiram rumores de que Jesus ressuscitara. Seus discípulos seguiram rezando no templo como judeus, mas alguns deles entraram em choque com o sistema religioso e se refugiaram em Antioquia (atual Turquia). Foi lá que receberam pela primeira vez o nome de cristãos, porque diziam em grego que seu mestre era Christos, o Ungido, o Messias.
No ano 66, a luta entre facções judaicas havia descambado para a guerra civil. Para complicar, o procurador romano Floro não teve idéia melhor que surrupiar tesouros do templo. Foi a gota d’água para uma nova revolta judaica, liderada pela seita dos zelotes. Nesse clima tenso, entrou em ação um grupo judaico ainda mais radical, o dos sicários. Seu nome vem do latim sicae, uma adaga curva que eles usavam para matar os romanos e simpatizantes.
Para reprimir os revoltosos, Roma destacou Vespasiano, seu melhor general. Ele reuniu cerca de 60 mil soldados e planejou um ataque decisivo a Jerusalém, mas precisou voltar a Roma para suceder o imperador Nero. A tarefa coube então a seu filho Tito, que sitiou a cidade em agosto do ano 70. Como em outras vezes, o templo foi palco das lutas mais sangrentas.
Resultado: a revolta foi massacrada e o templo novamente destruído. Da estrutura original sobrou só o Muro das Lamentações, um trecho da muralha externa – hoje o local mais sagrado do judaísmo. Antigo centro espiritual, Jerusalém era pouco mais que uma base longínqua do império. Os judeus expulsos iniciaram uma grande diáspora pelo mundo. Os que ficaram foram tomados por uma nova surpresa no ano 130, quando o imperador Aélio Adriano visitou a cidade e anunciou que a transformaria num centro de adoração dos deuses pagãos. Se levado a cabo, o projeto jogaria uma pá de cal na ligação judaica com Jerusalém.
Assim, entre 132 e 135, os judeus voltaram à guerrilha – e sofreram reveses ainda piores. Foram queimadas as 50 fortalezas e as 985 vilas judaicas. Centenas de milhares de judeus morreram e os outros tantos foram desterrados. Sobre as ruínas de Jerusalém, Adriano construiu a cidade romana de Aélia Capitolina e ergueu um santuário a Júpiter no local do antigo templo. Para apagar qualquer ligação dos judeus com aquela terra, os romanos mudaram o nome da Judéia para Síria Palestina, em alusão aos filisteus – povo que habitou a costa mediterrânea na Idade do Ferro e que, àquela altura, já desaparecera.
De Bizâncio ao islã
Os cristãos viveram como uma seita perseguida durante os primeiros anos da Aélia Capitolina. “Mas tudo mudou no século 4, quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo e o transformou na religião oficial de Roma”, diz o pesquisador americano Michael Hart. Constantino também transferiu a capital do império para Bizâncio e a chamou de Constantinopla (atual Istambul). Esse novo império seria conhecido como Bizantino.
Com a ascensão do cristianismo, o bispo Macário pediu ao imperador para demolir o templo de Vênus, construído 200 anos antes por Adriano, e expor a tumba de Cristo – que, segundo ele, estaria embaixo do santuário. “Constantino gostou da idéia. Seu império cristão precisava de símbolos e monumentos que lhe conferissem ressonância histórica”, diz Karen. “Sob o templo, achou-se um túmulo que foi logo identificado como o Santo Sepulcro.”
Anos depois, sob a supervisão da rainha Helena, mãe de Constantino, os operários também descobriram aquela que foi identificada como a pedra do Gólgota. O imperador mandou construir várias igrejas nesse novo complexo sagrado, que ganhou o nome de Nova Jerusalém. “Tão logo foi descoberto o túmulo de Jesus e construída a Basílica do Santo Sepulcro, os cristãos desenvolveram sua própria mitologia a respeito do lugar, situando-o no centro de sua espiritualidade”, diz a historiadora. Graças às novas imigrações, os cristãos passaram a ser maioria em Jerusalém. Os pontos de peregrinação também mudaram: em lugar do monte do Templo e das ruínas da cidade de Davi, as novas atrações eram o Gólgota e o Santo Sepulcro.
O cristianismo floresceu em Jerusalém até 614, quando o Exército persa chegou aos muros da cidade. Testemunha dos acontecimentos, o monge Antíoco Strategos relatou que os invasores irromperam como “javalis ferozes, rugindo e matando quem quer que avistassem, inclusive mulheres e crianças”. Segundo Strategos, 60 mil cristãos foram mortos. Os persas destruíram todas as igrejas e confiaram Jerusalém aos aliados judeus, mas por pouco tempo: em 629, o imperador Heráclito retomou a ofensiva e ocupou a cidade.
No início, Heráclito perdoou quem tinha colaborado com os persas. Porém, para apaziguar os cristãos, ele baniu novamente os judeus da cidade e depois ordenou que todos eles recebessem o batismo. De novo um soberano cristão desagradava os súditos judeus, cujo apoio seria irrecuperável 3 anos depois – quando os bizantinos enfrentariam um novo perigo mortal.
De fato, quando a Pérsia e Bizâncio estavam exaustos de lutar entre si, Jerusalém caiu na mira de uma nova potência: o islã. “Seus conquistadores partiram da Arábia e avançaram sobre o Oriente Médio, África, Europa, Índia e China ao mesmo tempo, aliando a vanguarda da ciência ao maior poderio militar da Terra”, diz o historiador Bernard Lewis, da Universidade Princeton. As tropas marchavam sob o comando dos califas, sucessores do profeta Maomé.
Quando entrou em Jerusalém, o califa Omar liderou a conquista mais pacífica até então. Os cristãos se renderam e não houve matança, queima de símbolos religiosos ou expulsão. Omar conferiu aos cristãos e aos judeus o status de minorias protegidas. Ou seja, eles poderiam seguir sua fé desde que pagassem impostos.
Como os ocupantes anteriores, os muçulmanos deixaram suas marcas na cidade. A mais impressionante é a Cúpula do Rochedo (ou Domo da Rocha), construída no monte do Templo no século 7 pelo califa Abd Al Malik. Ela atuou como divisor de águas porque alçou a cidade ao centro do islã. Muito da doutrina muçulmana vem da herança judaica, incluindo a devoção aos sítios sagrados de Jerusalém. Soma-se a isso a fé exclusivamente islâmica num episódio: a viagem que Maomé teria feito de Meca a Jerusalém sobre um animal alado – e na companhia do arcanjo Gabriel – e sua posterior ascensão ao céu desde a rocha sobre a qual seria erguido o domo. Agora chamada de Al Quds (“A Santa”), Jerusalém passou a ser a 3ª cidade mais sagrada do islã, atrás de Meca (onde Maomé nasceu) e de Medina (local da primeira comunidade islâmica).
O contra-ataque da cristandade começou em 1096, quando milhares de soldados rumaram a Jerusalém, seguidos de hordas de camponeses e peregrinos – todos motivados pela promessa papal de que a cruzada anularia seus pecados. Foi um banho de sangue. “Cabeças, mãos e pés se amontoavam nas ruas”, escreveu na época o cronista Raimundo de Aguilers, testemunha da matança. O novo líder local, Godofredo de Bulhão, fez da mesquita al-Aqsa sua residência oficial e converteu a Cúpula do Rochedo numa igreja.
Entretanto, muitos soldados voltaram para casa após a conquista, fazendo o exército cristão minguar. Os cruzados também não tinham um plano de governo definido, o que gerou disputas internas. Enquanto isso, o império islâmico se reorganizou em torno do sultão curdo Salah al-Din Yusuf Ibn Ayyub, ou Saladino. Em 1187, ele entrou em Jerusalém disposto a vingar o massacre, mas aceitou a rendição pacífica. Retirou as cruzes das mesquitas e entregou a custódia do Santo Sepulcro aos gregos ortodoxos. Com a morte de Saladino, em 1194, o império muçulmano ruiu com as lutas entre os herdeiros. Al Quds passou então para o império dos mamelucos, um povo islamizado da Ásia Central. Foi nessa época que ela começou a se parecer mais com a Jerusalém Velha de hoje, com bairros para muçulmanos, judeus, cristãos e armênios (veja os mapas na pág. 48).
Em 1453, os turcos otomanos derrubaram o Império Bizantino. Não tardou até conquistarem Jerusalém, dando início a um domínio de 4 séculos marcado pela restauração da cidade e pela boa convivência entre os moradores. Foi o sultão otomano Solimão, o Magnífico, que mandou reerguer as muralhas da cidade – as mesmas que podem ser vistas até hoje.
O presente
Os turcos dominaram Jerusalém por 400 anos, mas foi apenas no final desse período que ela assumiu as feições atuais. A antiga cidade nas colinas da Judéia se expandia além dos muros. Sua população saltou de 11 mil habitantes em 1830 para quase 22 mil em 1870 – metade deles judeus e a outra metade árabes (muçulmanos e cristãos). Em 1880, chegaram as primeiras levas de imigrantes judeus, que realizavam o refrão entoado em 1 000 anos de diáspora: “Ano que vem, em Jerusalém”.
O problema estava só começando. O Império Otomano cambaleava nas batalhas contra os exércitos europeus e enfrentava o crescente nacionalismo árabe em seu território. Em 1918, quando o Império Otomano caiu, franceses e britânicos lotearam as terras da região em fronteiras totalmente novas, que só respeitavam os seus próprios interesses. O Reino Unido, que passou a administrar a Palestina, logo percebeu o abacaxi que tinha nas mãos: judeus e árabes reivindicavam aquela terra.
Até então, Jerusalém era secundária nessa questão. Os primeiros sionistas eram laicos – fizeram o primeiro escritório da Organização Sionista na Palestina em Jaffa, perto de Tel-Aviv. Aos poucos, porém, Jerusalém passou a representar a essência do projeto nacional judaico. Entre os árabes, a luta política também assumiu caráter religioso. Muhamad Amin Al-Hussaini, o grão-mufti de Jerusalém – responsável pelos lugares santos muçulmanos –, utilizou a mitologia para incentivar o nacionalismo de seu povo. “Ele transformou o monte do Templo em símbolo da identidade palestina”, diz o historiador e ex-chanceler israelense Shlomo Ben Ami no livro Cicatrizes de Guerra, Feridas de Paz.
Não foi por acaso que o primeiro grande conflito entre judeus e árabes explodiu em 1929, ao pé do monte do Templo. A partir desse ano, a festa que comemorava a ascensão de Maomé ao céu (Al Isra) foi chamada de “Dia da Palestina”. A tensão cresceu em 1936, quando os palestinos se revoltaram contra a permissão dos ingleses à imigração judaica. À medida que a violência aumentava, com ataques de radicais de ambos os lados, a comunidade internacional cogitou a divisão da Palestina. Os ingleses propuseram isso em 1937, mas Al-Hussaini recusou a idéia.
Após um atentado com 91 mortos, perpetrado por radicais judeus em seu QG, os ingleses passaram o pepino para as Nações Unidas. Em 1947, a ONU aprovou a divisão da Palestina em dois Estados – um judeu e outro árabe –, com Jerusalém sob administração internacional. Os judeus aceitaram, mas não a Liga Árabe. Resultado: Israel declarou sua independência em 1948, ano em que eclodia a primeira das 6 guerras com os países vizinhos. No armistício de 1949, a parte oriental de Jerusalém (de maioria árabe) passou para a Jordânia. A ocidental (de maioria judaica) ficou com os israelenses.
Na Guerra dos 6 Dias, em 1967, Israel conquistou a parte oriental – e a Cidade Velha. “Retornamos ao nosso lugar mais sagrado. Nunca o deixaremos”, disse o general israelense Moshé Dayan, que redesenhou a cidade. “Muitos israelenses hoje se perguntam: esses devem ser realmente os limites da cidade?”, diz Aaron Klein, correspondente da revista Time em Jerusalém. “Existem áreas ali que são 100% palestinas. Não fosse o traçado de Moshé Dayan, elas seriam hoje parte da Autoridade Palestina.”
Se Jerusalém não vai à Palestina, a Palestina vai a Jerusalém. Quando Dayan reunificou Jerusalém, 74% dos habitantes eram judeus e 26% árabes. Como os árabes têm mais filhos e a radicalização de ambos os lados afugenta os judeus laicos, hoje há 66% de judeus e 34% de árabes.
Tem solução?
A questão atual de Jerusalém envolve dois elementos: a) a soberania sobre a cidade, reivindicada por israelenses e palestinos; e b) o status dos lugares sagrados, reclamado por judeus, cristãos e muçulmanos.
Não que identificar esses elementos facilite a coisa. “Nacionalismo e religião estão mais entrelaçados em Jerusalém do que em qualquer outro lugar”, diz Bernard Wasserstein, autor de Divided Jerusalem (“Jerusalém Dividida”, sem tradução no Brasil). A cidade é como uma boneca russa: sempre há uma boneca menor dentro dela. Ela está no coração da disputa entre palestinos e israelenses – apesar da pouca importância estratégica e econômica, Jerusalém tem um valor simbólico imensurável. Esse conflito, por sua vez, está dentro da contenda entre Israel e os países árabes ou – como alguns querem – entre o Ocidente e o islã. Essas disputas escondem bonecas menores, como a briga entre Hamas e Fatah e entre judeus laicos e religiosos. O cristianismo não fica de fora, pois Jerusalém está na origem do antagonismo entre católicos e ortodoxos.
É por isso que Jerusalém permanece no centro do mundo, enquanto cidades como Roma ficaram no passado. Desde que Davi tomou a fortaleza jebusita, a cidade foi continuamente destruída e reconstruída. Onde antes voavam lanças de bronze hoje explodem terroristas suicidas – mas as tensões continuam as mesmas.
Felizmente, as esperanças também. “As sociedades que permaneceram por mais tempo em Jerusalém foram as que permitiram algum tipo de tolerância e convivência”, diz Karen Armstrong. Essa pode ser a lição para que Jerusalém realmente seja um dia a cidade da paz.

Uma cidade em camadas

Em Jerusalém, o que é velho esconde jóias arqueológicas ainda mais antigas
JERUSALÉM HOJE
O acesso à cidade murada de Jerusalém é feito pelas antigas portas (a mais nova – chamada, veja só!, Porta Nova, foi construída em 1887). O centro é dividido em 4 setores: judeu, cristão, muçulmano e armênio. Com exceção do setor judeu – em que a população judia predomina –, os muçulmanos são maioria em todo o casco histórico.
PERÍODO OTOMANO (até o séc. 20)
Os limites da cidade histórica se mantêm desde o domínio dos otomanos. A Via Dolorosa, que aparece no mapa, representa as estações do suplício de Jesus. Não há evidência histórica de que esse tenha sido o caminho da crucifixão – é provável que o trajeto tenha sido recriado pela tradição cristã.
A CIDADE DOS CRUZADOS (sécs. 11 e 12)
Os cruzados deixaram sua marca na arquitetura de Jerusalém ao tomar a cidade no século 11. Além de transformar várias mesquitas e outras edificações muçulmanas (até o Domo da Rocha) em igrejas, eles construíram seus próprios templos – como a igreja Santa Maria Latina, que no século 19 seria tranformada em igreja luterana.
ROMANOS E BIZANTINOS
No início da era cristã, os romanos destruíram a cidade e construíram outra, batizada Aélia Capitolina. Sobre as ruínas do templo judeu, fizeram estátuas de seus imperadores, além de um santuário dedicado aos deus Júpiter. Mais tarde, os bizantinos descobriram sítios como o Santo Sepulcro e inauguraram a era das peregrinações cristãs. Eles foram sucedidos pela ocupação muçulmana.
TERRA DE DAVI E SALOMÃO (séc. 10 a.c.)
Nos primórdios do reino de Israel, esta era a área ocupada pela cidade. Davi foi o primeiro rei hebreu, e seu filho Salomão foi o responsável pela construção do Templo de Jerusalém. Mas os hebreus não foram os primeiros ocupantes do terreno: eles o tomaram dos jebusitas, que sucederam os cananeus...
O TEMPLO DE HERODES (séc. 1 a.c.)
Era assim a Jerusalém por onde andou Jesus Cristo: o rei Herodes, um judeu testa-de-ferro dos romanos, havia restaurado o templo, onde eram feitos os sacrifícios rituais judeus (após a destruição do local, eles baniram a prática). A capital da Judéia tinha um território bem maior que o delimitado pela muralha atual.

A pedra da discórdia

Um monte de terra árida, distante de portos e rotas comerciais. Falando assim, nem dá para imaginar que se trata do pedaço mais disputado do planeta: o monte do Templo. Sobre esse monte jaz uma grande rocha que é fundamental para entender as disputas por Jerusalém.
Há 2 mil anos, essa rocha ficava no Templo de Herodes, cujo único vestígio atual é o Muro das Lamentações. “Segundo a tradição judaica, essa é a rocha sobre a qual Abraão ofereceu seu filho Isaac em sacrifício a Deus e Davi depositou a Arca Sagrada”, diz o arqueólogo americano Eric Cline. Os muçulmanos, porém dizem que o filho que o patriarca ofereceu em holocausto era Ismael, de quem eles descenderiam.
O monte também é o ponto de onde Maomé teria ascendido ao céu. Sem falar que ele é sagrado para os cristãos, pois está ligado à passagem de Jesus pelo templo. Para as 3 religiões, portanto, ali é o centro do mundo.
Muitos crêem que a rocha esteve no Templo de Salomão, erguido há 3 mil anos. Na verdade, ninguém sabe o local exato do templo. Não importa: essa combinação de pedras e idéias tornou Jerusalém a cidade mais importante da história.
Hoje a segurança do monte do Templo está a cargo de Israel, enquanto a administração é feita por um conselho religioso islâmico chamado waqf. Os não-muçulmanos podem visitar o monte, mas só em grupos reduzidos, em dias restritos e sem objetos religiosos. Em setembro de 2000, o então primeiro-ministro Ariel Sharon esteve lá: isso causou a fúria dos palestinos, que usaram o episódio como pretexto para a 2ª intifada.
Atualmente, as atenções estão voltadas para um complexo subterrâneo conhecido como Estábulos de Salomão. Em 1996, os waqf transformaram o local na maior mesquita de Israel. No ano seguinte, iniciaram uma obra que retirou 12 mil toneladas de terra – o que Israel classificou como “um crime arqueológico sem precedentes”. Com tantas mexidas no subsolo, os arqueólogos temem que as peregrinações às mesquitas façam o complexo desmoronar.

O que cada grupo quer para a cidade

Governo israelense:
A posição oficial é que Jerusalém é a capital eterna e indivisível de Israel. Recentemente, porém, setores do governo afirmaram que o país estaria disposto novamente a entregar bairros de maioria árabe à Autoridade Palestina.
População israelense:
59% é contra a divisão da cidade, segundo pesquisa da Universidade de Tel-Aviv e do Centro Tami Steinmetz de Pesquisas pela Paz.
Judeus ultra-ortodoxos:
Opõem-se a qualquer concessão de partes de Jerusalém.
Autoridade Palestina:
Reivindica Jerusalém Oriental como capital do futuro Estado palestino. Isso inclui lugares sagrados como o monte do Templo. Porém, na conferência de Annapolis, realizada em dezembro passado, o líder Mahmoud Abbas se comprometeu a negociar.
Árabes de Jerusalém:
Apesar do apoio à Palestina, a maioria se opõe à divisão da cidade, pois perderia o trabalho nos bairros judaicos, além do bem-estar social garantido pela cidadania israelense. Também temem que a cidade seja governada pelo Hamas.
Hamas:
Não reconhece a existência do Estado de Israel e boicota as negociações de paz. Seu projeto é fundar um regime teocrático na Palestina, com Jerusalém como capital.
Vaticano:
Defendeu a internacionalização da cidade quando a ONU votou pela partilha da Palestina, em 1947. Ultimamente vem apoiando a internacionalização apenas dos lugares santos.
Evangélicos de Jerusalém:
São contra qualquer divisão da cidade, pois isso contraria a promessa bíblica da Terra Santa ao povo judeu.

Para saber mais

Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões
Karen Armstrong, Companhia das Letras, 2000.
Jerusalem Besieged
Eric Cline, University of Michigan Press, 2005.
Divided Jerusalem
Bernard Wasserstein, Yale University Press, 2002.
Fonte: Site da Super interessante