quarta-feira, 23 de junho de 2010

Regeneração nas Confissões Reformadas


Rev. Herman Hoeksema


As confissões Reformadas enfatizam a obra do novo nascimento. A Confissão Belga menciona a regeneração, mas a referência é somente à regeneração no sentido mais amplo, como é evidente a partir do fato que a regeneração é mencionada apenas no contexto da santificação e boas obras:
Cremos que a verdadeira fé, tendo sido acesa no homem pelo ouvir da Palavra de Deus e pela obra do Espírito Santo, regenera o homem e o torna um homem novo. Esta verdadeira fé o faz viver na vida nova e o liberta da escravidão do pecado.2
É evidente, portanto, que a Confissão Belga não fala de regeneração em seu sentido mais particular, mas somente no sentido de santificação.
Contudo, os Cânones de Dort dão uma bela descrição dessa obra divina chamada o novo nascimento:
Deus realiza seu bom propósito nos eleitos e opera neles a verdadeira conversão da seguinte maneira: Ele faz com que ouçam o Evangelho mediante a pregação e poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo de tal modo que possam entender corretamente e discernir as coisas do Espírito de Deus. Mas pela operação eficaz do mesmo Espírito regenerador, Deus também penetra até os recantos mais íntimos do homem. Ele abre o coração fechado e amolece o que está duro, circuncida o que está incircunciso e introduz novas qualidades na vontade. Esta vontade estava morta, mas Ele a faz reviver; era má, mas Ele a torna boa; estava indisposta, mas Ele a torna disposta; era rebelde, mas Ele a faz obediente. Ele move e fortalece esta vontade de tal forma que, como uma boa árvore, seja capaz de produzir frutos de boas obras.


Esta conversão é aquela regeneração, renovação, nova criação, ressurreição dos mortos e vivificação, tão exaltada nas Escrituras, a qual Deus opera em nós, sem nós. Mas esta regeneração não é efetuada pela pregação apenas, nem por persuasão moral. Nem ocorre de tal maneira que, havendo Deus feito a sua parte, resta ao poder do homem ser regenerado ou não regenerado, convertido ou não convertido. Ao contrário, a regeneração é uma obra sobrenatural, poderosíssima, e ao mesmo tempo agradabilíssima, maravilhosa, misteriosa e indizível. De acordo com o testemunho da Escritura, inspirada pelo próprio autor desta obra, regeneração não é inferior em poder à criação ou à ressurreição dos mortos. Conseqüentemente, todos aqueles em cujos corações Deus opera desta maneira maravilhosa são, certamente, infalível e efetivamente regenerados e de fato passam a crer. Portanto a vontade que é renovada não é apenas acionada e movida por Deus, mas ela age também, sob a ação de Deus, por si mesma. Por isso também se diz corretamente que o homem crê e se arrepende mediante a graça que recebeu.3
Sempre tem havido diferença de opinião, e algumas vezes uma controvérsia acalorada, entre o povo e teólogos Reformados sobre a questão da relação entre regeneração e chamado. Em nossa opinião, haverá pouquíssima razão para essa controvérsia acalorada sobre esse assunto, se apenas fizermos distinções corretas e acuradas. Num certo sentido, de fato pode ser mantido que o chamado precede a regeneração, com a condição que definamos com clareza o que se quer dizer por chamado e renascimento. Em outro sentido, contudo, deve ser mantido mui definitivamente que a regeneração é a primeiríssima obra no coração do pecador, e que não pode haver nenhum ouvir salvífico da palavra de Deus sem essa regeneração do coração.


Fonte: Reformed Dogmatics, vol. 2, Herman Hoeksema, Reformed Free Publishing Association, pp. 35-36.

1E-mail para contato: felipe@monergismo.com. Traduzido em agosto/2008.

2Confissão Belga, Artigo 24.

3Cânones de Dort, III/IV:11-12.

O que aconteceu com os Evangélicos?

Quando Paulo Romeiro escreveu Evangélicos em Crise em meados da década de 90, ele apenas tocou em uma das muitas áreas em que o evangelicalismo havia entrado em colapso no Brasil: a sua incapacidade de deter a proliferação de teologias oriundas de uma visão pragmática e mercantilista de igreja, no caso, a teologia da prosperidade.

Fica cada vez mais claro que os evangélicos estão atualmente numa crise muito maior, a começar pela dificuldade – para não falar da impossibilidade – de ao menos se definir hoje o que é ser evangélico.

Até pouco tempo, “evangélico” indicava vagamente aqueles protestantes de entre todas as denominações – presbiterianos, batistas, metodistas, anglicanos, luteranos e pentecostais, entre outros, que consideravam a Bíblia como Palavra de Deus, autoritativa e infalível, que eram conservadores no culto e nos padrões morais, e que tinham visão missionária.

Hoje, no Brasil, o termo não tem mais essa conotação. Ele tem sido usado para se referir a todos os que estão dentro do cristianismo em geral e que não são católicos romanos: protestantes históricos, pentecostais, neopentecostais, igrejas emergentes, comunidades dos mais variados tipos, etc.

É evidente a crise gigantesca em que os evangélicos se encontram: a falta de rumos teológicos definidos, a multiplicidade de teologias divergentes, a falta de uma liderança com autoridade moral e espiritual, a derrocada doutrinária e moral de líderes que um dia foram reconhecidos como referência, o surgimentos de líderes totalitários que se auto-denominam pastores, bispos e apóstolos.

A conquista gradual das escolas de teologia pelo liberalismo teológico, a falta de padrões morais pelos quais ao menos exercer a disciplina eclesiástica, a depreciação da doutrina, a mercantilização de várias editoras evangélicas que passaram a publicar livros de linha não evangélica, e o surgimento das chamadas igrejas emergentes. A lista é muito maior e falta espaço nesse post.

Recentemente um amigo meu, respeitado professor de teologia, me disse que o evangelicalismo brasileiro está na UTI. Concordo com ele. A crise, contudo, tem suas raízes na própria natureza do evangelicalismo, desde o seu nascedouro.

Há opiniões divergentes sobre quando o moderno evangelicalismo nasceu. Aqui, adoto a opinião de que ele nasceu, como movimento, nas décadas de 50 e 60 nos Estados Unidos. Era uma ala dentro do movimento fundamentalista que desejava preservar os pontos básicos da fé (veja meu post sobre Fundamentalismo), mas que não compartilhava do espírito separatista e exclusivista da primeira geração de fundamentalistas.

A princípio chamado de “neo-fundamentalismo”, o evangelicalismo entendia que deveria procurar uma interação maior com questões sociais e, acima de tudo, obter respeitabilidade acadêmica mediante o diálogo com a ciência e com outras linhas dentro da cristandade, sem abrir mão dos “fundamentos”.

Eles queriam se livrar da pecha de intransigentes, fechados, bitolados e obscurantistas, ao mesmo tempo em que mantinham doutrinas como a inerrância das Escrituras, a crença em milagres, a morte vicária de Cristo, sua divindade e sua ressurreição de entre os mortos. Eram, por assim dizer, fundamentalistas esclarecidos, que queriam ser reconhecidos academicamente, acima de tudo.

O que aconteceu para o evangelicalismo chegasse ao ponto crítico em que se encontra hoje? Tenho algumas idéias que coloco em seguida.

1. O diálogo com católicos, liberais, pentecostais e outras linhas sem que os pressupostos doutrinários tivessem sido traçados com clareza. Acredito que podemos dialogar e aprender com quem não é reformado. Contudo, o diálogo deve ser buscado dentro de pressupostos claros e com fronteiras claras. Hoje, os evangélicos têm dificuldades em delinear as fronteiras do verdadeiro cristianismo e de manter as portas fechadas para heresias.

2. A adoção do não-exclusivismo como princípio. Ao fazer isso, os evangélicos começaram a abrir a porta para a pluralidade doutrinária, a multiplicidade de eclesiologias e o relativismo moral, sem que tivessem qualquer instrumento poderoso o suficiente para ao menos identificar o que estivesse em desacordo com os pontos cruciais.

3. O abandono gradual da aderência a esses pontos cruciais com o objetivo de alargar a base de comunhão com outras linhas dentro da cristandade. Com a redução cada vez maior do que era básico, ficou cada vez mais ampla a definição de evangélico, a ponto de perder em grande parte seu significado original.

4. O abandono da confessionalidade, dos grandes credos e confissões do passado, que moldaram a fé histórica da Igreja com sua interpretação das Escrituras. Não basta dizer que a Bíblia não tem erros. Arminianos, pelagianos, socinianos, unitários, eteroteólogos, neopentecostais – todos afirmarão isso.

O problema está na interpretação que fazem dessa Bíblia inerrante. Ao jogar fora séculos de tradição interpretativa e teológica, os evangélicos ficaram vulneráveis a toda nova interpretação, como a teologia relacional, a teologia da prosperidade, a nova perspectiva sobre Paulo, etc.

5. A mudança de uma orientação teológica mais agostiniana e reformada para uma orientação mais arminiana. Isso possibilitou a entrada no meio evangélico de teologias como a teologia relacional, que é filhote do arminianismo. Permitiu também a invasão da espiritualidade mística centrada na experiência, fruto do reavivalismo pelagiano de Charles Finney.

Essa mudança também trouxe a depreciação da doutrina em favor do pragmatismo, e também o antropocentrismo no culto, na igreja e na missão, tudo isso produto da visão arminiana da centralidade do homem.

Mas talvez o pior de tudo foi a perda da cosmovisão reformada, que serviria de base para uma visão abrangente da cultura, ciência e sociedade, a partir da soberania de Deus sobre todas as áreas da vida. Sem isso, o evangelicalismo mais e mais tem se inclinado a ações isoladas e fragmentadas na área social e política, às vezes sem conexão com a visão cristã de mundo.

6. Por fim, a busca de respeitabilidade acadêmica, não somente da parte dos demais cristãos, mas especialmente da parte da academia secular. Essa busca, que por vezes tem esquecido que o opróbrio da cruz é mais aceitável diante de Deus do que o louvor humano, acabou fazendo com que o evangelicalismo, em muitos lugares, submetesse suas instituições teológicas aos padrões educacionais do Estado e das universidades.

Padrões esses comprometidos metodológica, filosófica e pedagogicamente com a visão humanística e secularizada do mundo, em que as Escrituras e o cristianismo são estudados de uma perspectiva não cristã. Abriu-se a porta para o velho liberalismo.

Não há saída fácil para essa crise. Contudo, vejo a fé reformada como uma alternativa possível e viável para a igreja evangélica brasileira, desde que se mantenha fiel às grandes doutrinas da graça e aos lemas da Reforma, e que faça certo aquilo que os evangélicos não foram capazes de fazer:

(1) dialogar e interagir com a diversidade delineando com clareza as fronteiras do cristianismo;

(2) abandonar o inclusivismo generalizado e adotar um exclusivismo inteligente e sensível;

(3) voltar a valorizar a doutrina, especialmente os pontos fundamentais da fé cristã expressos nos credos e confissões, que moldaram os inícios do movimento evangélico.

Talvez assim possamos delinear com mais clareza os contornos da face evangélica em nosso país.
 

Autor:
Augustus Nicodemus Lopes é pastor presbiteriano. Bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte (Recife), mestre em Novo Testamento pela Universidade Reformada de Potchefstroom (África do Sul) e doutor em Interpretação Bíblica pelo Westminster Theological Seminary (EUA), com estudos no Seminário Reformado de Kampen (Holanda). É chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro. 


Fonte: http://www.cacp.org.br/estudos/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=2399&menu=7&submenu=4 

A Teologia Primeira!

Durante a história, a construção das ideias sempre teve pontos de partida; uma espécie de “grau zero do conhecimento”, ponto a partir do qual surgem outras afirmações. Assim, por um tempo a Metafísica era a filosofia primeira. Isto é, as discussões partiam dos pressupostos da Metafísica de modo que o sobrenatural, as questões sobre a origem do mal, etc. eram gestoras das conclusões. Com a secularização da Filosofia, a Metafísica deixou de ser a filosofia primeira e cedeu seu lugar ao racionalismo, ao existencialismo e a outros campos da própria Filosofia. Dessa forma, quando se fala que a Metafísica deixou de ser a filosofia primeira, pode-se estar afirmando que Deus deixou de ser a fonte de verdade.

 No Cristianismo, tenho notado que a teologia primeira tem sido a Soteriologia, isto é, a doutrina da salvação, como se tivéssemos nascidos para ser salvos, o que equivaleria a dizer que para sermos salvos teríamos de cair em pecado, tornando Deus culpado por isso, uma grave contradição teológica.

 Afirmo isso com base na percepção de que muita coisa na vida comum da igreja gira em torno da salvação. A hinódia, o foco do trabalho na igreja, os sermões (culto noturno como evangelístico), as ênfases para o trabalho do crente, a seleção dos dons que mais são valorizados e reconhecidos, frases tais como “se uma igreja não for missionária nada sobra...”, “o sangue do pecador será requerido do crente que não evangelizar...”, “se você não conquistar pelo menos uma alma para Cristo não pode dizer que é crente...”. Eu já cheguei a ouvir que a missão da Escola Bíblica Dominical é evangelizar, e eu pensei que a missão de uma escola era ensinar!?!

 Por favor, não pense que estou falando contra evangelização e missões, particularmente acho que o que fazemos nesse campo ainda é muito pouco e, muitas vezes, um pouco empobrecido por um trabalho meramente conceitual baseado apenas numa lista de passos que chamamos de “Plano da Salvação”.

O que estou falando é que o ponto de partida da Teologia não pode ser a doutrina da salvação ou qualquer outra, mas o próprio Deus. Quando interpretamos tudo à luz da salvação e não de Deus, poderemos facilmente cair no antropocentrismo, pois, no fundo, partimos do ser humano e sua necessidade de ser salvo e não da razão pela qual Deus nos salvou — para nos levar de voltar a uma vida de total e incondicional dependência dele.

Isso quer dizer que a teologia primeira é a própria Teologia — a doutrina do próprio Deus — de quem vem todo sentido e razão de nossa vida. Tudo o mais no Cristianismo precisa ser entendido a partir dele e somente dele. É recuperar o lugar de Deus, onde sempre deveria estar!

Vou dar um exemplo de que esse reposicionamento acaba provocando um aprofundamento em nossa compreensão do restante do campo teológico cristão. Quando colocamos a Teologia (Deus) como ponto de partida, isso significa que a salvação deverá ser reinterpretada. Em vez de ter apenas uma significação jurídica — perdão e justificação dos pecados —, ou mesmo escatológica — ganhar a garantia do céu—, a salvação tem também uma conexão cosmológica. Nesse sentido, ao sermos salvos, somos reposicionados na ordem das coisas criadas, daí o ensino de Paulo em 2Coríntios 5.17 “se alguém está em Cristo, é nova criação...”. Em outras palavras, eu volto potencialmente ao estado de pré-queda, ainda que continue com a natureza pecaminosa. Daqui poderemos compreender a necessidade do amadurecimento na vivência cristã, do desenvolvimento cristão. Veja que agora o significado da salvação foi amplificado.

Eu poderia agora aplicar tudo isso à eclesiologia, tanto no campo da compreensão doutrinária quanto na prática, revendo, por exemplo, o conceito de missão de igreja, mas vou deixar isso para um outro artigo.
Deus é o ponto de partida e o ponto de chegada de tudo. A ele seja toda honra, glória e poder. Amém!
  • AUTOR
Lourenço Stelio Rega

Lourenço Stelio Rega

É teólogo, educador e escritor. É Bacharel e Mestre em Teologia, pós-graduado em Análise de Sistemas, Licenciando em Filosofia, Mestre em Educação e Doutor em Ciências da Religião. É  Diretor Geral e também professor de Ética, Bioética, Filosofia da Religião e Grego do NT na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É co-autor do livro Noções do Grego Bíblico: gramátca fundamental (Edições Vida Nova). Visite o site do autor: www.etica.pro.br/jeitinho.

Fonte: http://www.vidanova.com.br/teologiadet.asp?codigo=127

A (im)possibilidade do conhecimento de Deus

O livro X das Confissões de Santo Agostinho começa com a seguinte oração:

Conhecer-te, ó conhecedor de mim, conhecer-te tal como sou por ti conhecido.
Essa oração é, acima de tudo, a expressão de um desejo. Desejo por algo que nós homens não temos: o pleno conhecimento de Deus. É verdade que de algum modo conhecemos a Deus. Mas isso não quer dizer que o conheçamos do mesmo modo que ele nos conhece, i.e., plenamente. Nosso conhecimento é parcial, o conhecimento de Deus é pleno. Se por um lado, não conhecemos a Deus plenamente, por outro, não há nada em nós ou fora de nós que Deus não conheça. E não foi Santo Agostinho quem primeiro disse isso, mas o apóstolo Paulo, em 1Co 13.12: “Porque agora vemos como por um espelho, de modo obscuro, mas depois veremos face a face. Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido (grifo meu)”.


O “apóstolo dos gentios” disse que, no presente estado de vida (“agora”), conhecemos em parte, “como por um espelho”. Ora, ver por meio de um espelho não é ver diretamente, mas através de algo. Por exemplo, uma coisa é olhar diretamente para o sol, outra bem diferente é olhar para o sol que está refletido nas margens de um rio. Em ambos os casos, o que vemos é o sol. A diferença está no modo como nós o vemos. O mesmo vale para o conhecimento que temos de Deus, pois não o conhecemos do mesmo modo que um dia o conheceremos, i.e., plenamente. Contemplar sua face, tal como ela é, é ainda uma promessa que aguardamos com esperança. Portanto, conhecer a Deus de forma plena não é uma realidade para aqueles que vivem no mundo.


Em contrapartida, o mesmo não pode ser dito acerca de Deus, que nos vê e conhece plenamente. Nada do que somos ou venhamos a ser escapa ao seu olhar. Ele nos conhece de um modo que nem mesmo nós nos conhecemos.
 Com isso podemos afirmar que não conhecemos plenamente nem a nós mesmos. Uma vez que Deus conhece algo sobre nós que ainda não conhecemos, passamos a depender duas vezes da revelação divina. Duas vezes porque Deus não revela apenas o que dele podemos agora conhecer, mas também algo que somos e que jamais descobriríamos por nós mesmos. Pois como saberíamos que Deus nos conhece plenamente se ele não nos descortinasse realidades de nosso ser que permaneceriam completamente desconhecidas para nós? Não foi por menos que Calvino, em sua Instituição da Religião Cristã, ao falar sobre o conhecimento de Deus, começou fundamentando a tese de que o conhecimento de Deus e o de nós mesmos são “realidades inseparáveis”.


Podemos, então, concluir que o desejo pelo conhecimento pleno de Deus é também um desejo pelo pleno conhecimento de nós mesmos. Como esse conhecimento de nós mesmos ainda não é possível, busquemos o que, por enquanto, é possível: "conhecer em parte". E se de fato quisermos conhecer em parte quem e o que nós realmente somos, precisamos, então, conhecer em parte quem e o que Deus realmente é. Ora, para que Deus seja conhecido assim, é necessário crer em Jesus, o Cristo. Ele é o maior e mais verdadeiro conhecimento que podemos ter de Deus (Jo 14.7-11). A propósito, Alister McGrath, professor de teologia histórica na Universidade de Oxford, sugere que há duas declarações do Novo Testamento que não podemos perder de vista, quando pensamos sobre a maior revelação que agora podemos ter de Deus. A primeira é a declaração de que Cristo é “o resplendor da glória de Deus e a expressão exata de seu ser” (Hb1.3); a outra é a declaração de que Cristo é “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15). Com essas duas passagens, McGrath mostra o caráter pessoal da revelação de Deus por meio de Jesus Cristo em contraste com a impessoalidade da revelação natural, i.e., o conhecimento que se pode ter de Deus a partir das coisas criadas (Rm 1.20).

Em suma, Cristo, uma pessoa em carne e osso, é a máxima revelação que podemos ter de Deus. Vale a pena encerrar essa reflexão, recordando as palavras de Lutero — que durante muitos anos foi frade agostiniano —, mencionadas por Alister McGrath em Paixão pela verdade (São Paulo, Shedd Publicações, 2007, p. 33):


Deus não quer ser conhecido a não ser por intermédio de Cristo; nem pode ele ser conhecido de qualquer outro modo. Cristo é o descendente prometido a Abraão; nele, Deus cumpriu todas as suas promessas. Portanto, somente Cristo é o meio, a vida, e o espelho pelo qual vemos Deus e conhecemos sua vontade. Por meio de Cristo, Deus declara seu favor e misericórdia para conosco. Em Cristo, vemos que Deus não é um mestre irado e um juiz, mas sim um pai gracioso e bondoso, que nos abençoa, isto é, que nos salva da lei, do pecado, da morte, e de todo o mal, e nos oferece a justiça e a vida eterna mediante Cristo. Este é um conhecimento certo e verdadeiro de Deus; uma persuasão divina que não falha, mas retrata Deus mesmo numa forma específica, à parte da qual não há nenhum Deus (grifo meu).

Autor: Jonas Madureira
Fonte: http://www.vidanova.com.br/teologiadet.asp?codigo=100

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Escatologia e o reino de Deus


Iniciaremos proclamando que o nosso Senhor é Rei, e o seu reino é eterno! Essa é uma realidade atemporal. Na sua primeira manifestação, Israel reconhece e declara: “O Senhor reinará para sempre! Ó Sião, o teu Deus reinará por todas as gerações. Aleluia!” (Sl 146.10). O nosso Deus está assentado num alto e sublime trono, e governa sobre os filhos dos homens. Temos consciência do seu domínio porque cremos na sua soberania e afirmamos que absolutamente nada foge do seu controle.

Todo o poder e toda a majestade lhe pertencem. “Não existe ninguém semelhante a ti, ó Senhor; és grande, e grande é o poder de teu nome. portanto: “Quem não te temerá, ó Rei das nações? Pois a ti se deve o temor; porque entre todos os sábios das nações, e em todos os seus reinos não existe ninguém semelhante a ti” (Jr 10.6,7).
1. As várias dimensões da escatologia
Se o nosso Deus reina eternamente e reinará para sempre, falaremos, “neste sentido, de uma escatologia perfeita, de uma escatologia presente e de uma escatologia futura, bem como de uma escatologia que poderíamos chamar de trascendental, enquanto está se referindo ao agir do Deus eterno dentro, aquém e além de todos os tempos escatológicos.”1 A escatologia perfeita, para Claus Schwambach, é a irrupção da eternidade para dentro do tempo, da presença da salvação escatológica na pessoa e na obra de Cristo. A escatologia presente é apresentada como o Evangelho que anuncia o perdão, ela manifesta agora, de forma antecipada, o veredito de Deus como Juiz final. A palavra da cruz atualiza tanto o passado como o futuro, dando-lhes validade no presente. A escatologia futura tem como conteúdo a esperança cristã da ressurreição, o arrebatamento, a segunda vinda de Cristo, o juízo final, o fim do mundo, a nova criação, céu e inferno, a vitória final, “[...] quando ele entregar o reino a Deus, o Pai, quando houver destruído todo domínio, toda autoridade e todo poder. Porque é necessário que ele reine até que tenha posto todos os inimigos debaixo de seus pés” (1Co 15.24,25). “O reino de Deus não tem significado estritamente temporal. Ele expressa dinamicidade, atividade e está sempre orientado teocraticamente.”2

Reconhecendo a limitação humana não ousaremos medir o tempo nem tão pouco nos deteremos a examinar os sinais do tempo do fim, pois não limitamos a escatologia ao estudo dos eventos finais: “todos os temas teológicos apresentam uma dimensão escatológica.”3 Atentaremos ao fato de que a promessa escatológica da inserção do reino na história dos homens deve ser o incentivo, o impulso, a força do nosso compromisso de proclamar, como arautos do Rei, a vinda do seu Reino.
2. À procura da definição do tempo
Deus domina sobre o tempo, e os homens não têm capacidade de cronometrá-lo nem entendê-lo. O tempo pertence a Deus. Ele domina sobre as épocas, “Ele muda os tempos e as estações [...]” (Dn 2.21).

O controle do homem sobre o tempo é tão restrito e tão inseguro, que a humanidade vive na inquietação acerca do tempo do fim. Na virada do milênio todo mundo viveu sob o temor do que poderia acontecer. Mesmo vivendo a época mais avançada da ciência e da tecnologia, em que o homem se põe no centro do universo exibindo seu domínio sobre a criação, a incerteza quanto ao tempo escatológico apavora tanto os mais ignorantes como os mais entendidos, tanto os religiosos como os céticos.

Segundo Stephen Jay Gould, cientista paleontólogo, a descoberta, no século XVIII, de que a história do universo não se contava em milhares, mas em bilhões de anos perturbou os sábios e constituiu a maior revolução intelectual dos tempos modernos. Porém, o Criador do tempo exibe sua sabedoria tão alta e tão profunda que inibe uma aproximação definida dos números, o que induz o cientista a dizer: “O problema, é que a natureza não produz regularidades astronômicas que permitam estabelecer ciclos numéricos simples. [...] a relação entre o calendário e os ciclos astronômicos não se exprime em termos matemáticos simples. O problema vem da maneira como a natureza funciona.”4

A maneira como Deus lida com a sua criação põe a cronologia do tempo e dos fatos numa escala acima do entendimento e da inquirição humana. E é percebendo essa verdade que Gould, acuado com as pequenas brechas deixadas pelo Criador para percepção da luz do tempo, conclui: “A complexidade do calendário é um desafio à astúcia humana. É por isso que dizemos: se Deus existe, ou tem senso de humor ou é uma nulidade em matemática [...] ou é simplesmente incompreensível para um espírito humano.”5 A ciência tem que se dobrar diante da inescrutável força e sabedoria do Criador do tempo e dos tempos.
3. Os sinais dos tempos
Dentre tantas catástrofes que o planeta já sofreu e vem sofrendo, desde o dilúvio quando o mundo de então foi destruído com água, predições têm sido feitas, por cientistas e religiosos, quanto à destruição do planeta e quanto ao tempo do fim. Citaremos apenas algumas: o aquecimento da terra seguido do esfriamento do sol, a perda da camada de ozônio, previsão de possível queda dos meteoros e asteróides, os terremotos, as injustiças sociais, as opressões dos sistemas políticos, a miséria, o desenvolvimento científico, etc. No dia 11 de setembro, aconteceu o atentado ao World Trade Center em New York, o que engendrou no mundo o pavor do terrorismo. Fica evidente na guerra entre o Ocidente e o Oriente, que o ódio ao povo da promessa — Israel — e a rejeição ao Cristianismo constroem uma barreira de separação que nenhum tratado de paz, nem negociação econômica nem poder bélico podem quebrar. Ficou revelado o esquema da Al Qaeda montado em todo o mundo. Se Osama Bin Laden tem comando organizado em 40 países, como será possível vencer o terrorismo? Arnaldo Jabor, comentarista da rede Globo, disse que, para haver uma reconciliação, o Ocidente precisa mudar o modo como é visto pelo Oriente — com cara de diabo e malignidade. Não será essa a hora do aparecimento do anticristo para promover a paz mundial? Diante disso, a tarefa missionária fica ainda mais difícil porque a cara do Ocidente se confunde com a face do cristianismo em seu desenvolvimento ocidental. Não será este um sinal específico do fim?

Muitos têm estado atentos aos sinais e eventos preditos por Jesus no sermão do Monte das Oliveiras, no capítulo 24 de Mateus. As guerras e rumores de guerras, a fome e terremotos, o aumento da iniquidade, os falsos profetas, as perseguições sofridas pelos servos de Deus, os massacres e os martírios que a Igreja do Senhor tem sido alvo ao longo dos séculos, tudo isso nos leva ao anseio escatológico e nos põe a questionar: quando virá o fim?
Magno Paganelli6 trabalha com os sinais no campo astronômico, no campo atmosférico e meteorológico e no campo hidrológico, como acontecimentos apocalípticos e assinala que já estamos vivendo o cenário que antecede o estabelecimento do anticristo. Muitas especulações surgiram no decorrer dos anos. Muitos tentam prognosticar a parousia, o segundo advento, com a intenção de encontrar uma resposta que satisfaça a curiosidade e a inquirição humana. No entanto, as previsões têm sido frustrantes. O tempo do fim é segredo de Deus e não cabe ao homem identificá-lo. Disse Jesus: “Mas, quanto ao dia e à hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão somente o Pai”(Mt 24.36). 
 4. As promessas do reino de Deus a Israel
A vinda do reino de Deus é o tema central do Antigo Testamento. Quando o Senhor escolheu Abraão para fazer dele uma nação separada, seu propósito era constituir um reino Teocrático. “Agora, perguntai aos tempos passados desde o dia em que Deus criou o homem [...] se alguma vez aconteceu coisa tão grande como esta [...] ou se algum deus decidiu tomar para si uma nação do meio de outra nação” (Dt 4.32,34). A intenção divina persistia em fazer Israel uma testemunha do seu Rei, para que todos os povos da terra percebessem que a nação era governada e dirigida por um Deus sábio e Todo-Poderoso. E os povos ouvindo os estatutos dirão: “Esta grande nação é realmente um povo sábio e inteligente. Pois que grande nação tem deuses tão próximos quanto o Senhor está de nós [...] e que grande nação há que tenha estatutos e preceitos tão justos quanto toda esta lei que hoje ponho diante de vós?” (Dt 4.6-8).

Deus fez aliança com seu povo: “Cuidado para não esquecerdes da aliança que o Senhor vosso Deus fez convosco” (Dt 4.23). Mas Israel quebrou a aliança. Mesmo assim o ministério profético em Israel condenava o pecado da nação, que impedia a ação divina e apontava para uma nova aliança. A esperança profética apontava não apenas para uma restauração, mas para um novo pacto. “Dias virão, diz o Senhor, em que farei uma nova aliança com a casa de Israel [...] e lhes darei um só propósito e procedimento, para que me temam para sempre. Farei com eles uma aliança eterna” (Jr 31.31; 32.39,40).

Tendo em vista que a monarquia teocrática não alcançou a legitimidade dentre as dinastias, tendo apenas algumas sinalizações no reinado de Davi e Salomão, evidenciou-se o contraste entre aquilo que era e aquilo que deveria ser, renovando, assim a esperança escatológica. “Logicamente, não se duvida que Deus seja Rei, mas a concretização de sua realeza torna-se objeto de esperança. Em outros termos, a ‘teocracia’ é aguardada no futuro, ela passa a ser escatológica.”7

O profeta Isaías identifica sua mensagem escatológica, no que diz respeito ao estabelecimento da Casa do Senhor, para a qual afluirão todos os povos. Após o julgamento e a correção de Deus os povos gozarão de paz universal. (Is 2.1-5)
A expressão usada por Isaías “naquele dia” é também indicadora da mensagem escatológica do profeta, na qual anuncia “o renovo do Senhor que será cheio de beleza e glória [...] e aquele que ficar em Sião e permanecer em Jerusalém será chamado santo, isto é, todo o que estiver inscrito entre os vivos de Jerusalém” (Is 4.2,3). O profeta prevê a extensão mundial do reino quando declara que: “Naquele dia, a raiz de Jessé será como uma bandeira aos povos, para onde as nações recorrerão; o seu descanso será glorioso” (Is 11.10).”8

Há um kerigma escatológico na profecia de Isaías identificada à luz do Novo Testamento. “A glória do Senhor se revelará; e todos juntos a verão. Aqui está o meu servo a quem sustento; o meu escolhido, em quem me alegro; pus o meu Espírito sobre ele; ele trará justiça às nações” (Is 40.1-5; 42.1) Isaías também profetiza: “Ano aceitável do Senhor,” a mesma diz respeito ao ministério do Messias na unção do Espírito do Senhor Deus. “Chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou na sinagoga no dia de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para fazer a leitura. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías; ele o abriu e achou o lugar em que estava escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar boas novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos presos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e para proclamar o ano aceitável do Senhor. E fechando o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e os olhares de todos na sinagoga estavam fixos nele. Então ele começou a dizer-lhes:

Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”. (Lc 4.16-21) O kerigma escatológico de Isaías tem o cumprimento no advento do Messias, através do qual Deus executa a salvação do seu povo. “Para os homens, a vinda escatológica de Deus significa o juízo e a salvação. Para Deus, ela equivale à manifestação da sua glória, ou de seu Nome e à instauração do seu Reino.”9

O profeta Daniel também vaticina e renova a esperança do reino escatológico. Cativo na Babilônia, apresenta-se ao grande rei Nabucodonosor e relata a interpretação da visão dos reinos que sucederiam no cenário mundial, e deixa claro que o Soberano reina sobre a terra acima dos poderosos: “É Ele quem remove reis e estabelece reis. O Altíssimo tem domínio sobre os reinos dos homens e o dá a quem quer” (Dn 2.21; 4.25). Mesmo que o seu braço não seja percebido e seus feitos sejam ofuscados pela soberba humana, Deus determina o tempo de cada reino até que o reino escatológico se estabeleça. Daniel nos dá algumas características desse reino.

Primeiro — o Reino é eterno. “o Deus do céu levantará um reino que não será jamais destruído” (2.44). Só o Deus infinito pode estabelecer um reino sem fim.

Segundo — O Reino de Deus é o reino do seu povo. “Não passará a outro povo” (2.44). Os escolhidos do Senhor reinarão com ele. “Mas os santos do Altíssimo receberão o reino e o possuirão para todo sempre, sim, para todo o sempre”(7.18).

Terceiro — o reino é divino, ele se estabelecerá sem o auxílio de mãos, sua erupção no reino dos homens é sobrenatural, não dependerá de acordos de paz nem de estruturas mercadológicas ou de sistemas políticos: “... uma pedra soltou-se sem o auxílio de mãos e feriu a estátua [...] destruirá e consumirá todos esses reinos.” (2.34,44) O profeta relata ainda outra visão (7.13-14) na qual: “... alguém parecido com filho do homem vinha nas nuvens do céu, [...] e foi-lhe dado domínio, e glória, e um reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno; que não passará, e o seu reino é tal, que não será destruído”.

O Senhor Jesus em Mateus 26.64 reivindica para si a profecia deixando claro que o reino escatológico está acima do reino de Davi. “É o novo status do Jesus ressurreto: autoridade absoluta, a autoridade do Filho do Homem. É evidente que Jesus demonstrava autoridade divina durante o seu ministério, mas essa autoridade estava encoberta pela forma humilde que ele assumiu. Depois de ressurreto ele assume uma autoridade cósmica, universal que lhe é de direito.”10

Quarto — O reino é escatológico — “O Grande Deus revela ao rei o que acontecerá’ no futuro.” (2.45) Era para Daniel um futuro distante, para nós, mais próximo, mas ainda a se cumprir. É para o futuro, mas é certo porque a interpretação é fiel!

Quinto — O reino é universal. Não dominará apenas o espaço geográfico da Palestina e não se limitará a nação de Israel: “A pedra que feriu a estátua se tornou uma grande montanha que encheu toda a terra” (2.35).
Estamos hoje aqui voltados para a visão de Daniel, a maior parte já cumprida; mas a expectativa e a esperança do seu total cumprimento nos fazem pedir: Venha o teu reino em toda a terra! Venha o teu reino entre todas as nações!
5. A escatologia e a missão
Quando Daniel recebeu as revelações acerca dos acontecimentos escatológicos, ele ouviu a pergunta de um ser que dizia: “Quando se cumprirão essas maravilhas?” depois o próprio Daniel indaga: “meu senhor, qual será o fim destas coisas?”. Em nenhum momento, Deus se deteve a responder acerca do tempo.

Jesus foi indagado por seus discípulos: “Dize-nos quando sucederão estas coisas e que sinal haverá da tua vinda e da consumação dos séculos” (At 1.6). O Senhor Jesus lhes respondeu dando alguns sinais e eventos que precederiam a queda de Jerusalém e o tempo do fim: um futuro imediato e a consumação escatológica. Após a ressurreição de Jesus, os discípulos voltaram a expor suas preocupações com o tempo da vinda do reino. “Senhor, é este o tempo em que restaurarás o reino para Israel? Ele lhes respondeu: Não vos compete saber os tempos ou as épocas que o Pai reservou por autoridade” (At 1.7). Mas, o homem continua a indagar: Quando será o fim? Há quase dois mil anos, o apóstolo Pedro fala dos escarnecedores que diziam: “Onde está a promessa da sua vinda?” porque julgavam a promessa demorada (2Pe 3.4,9).

O apóstolo João ouviu a voz dos mártires clamando em grande voz: “Ó Soberano, santo e verdadeiro, até quando aguardarás para julgar os que habitam sobre a terra e vingar o nosso sangue?” (Ap 6.10).

Quanto ao retorno do Senhor Jesus e quanto ao estabelecimento final e concreto do seu reino, nós não sabemos o tempo, nem especulamos acerca disso, mas procuraremos entender como o Senhor Jesus e os apóstolos trataram o assunto, identificando o que de fato deve nos preocupar e dando algumas razões da sua aparente demora.
“Jesus é movido em primeiro lugar pelo teocentrismo e não pela escatologia; em última análise revelar a Deus e o tornar visível no seu ser de Senhor e de Pai é mais fundamental para Jesus que anunciar a proximidade do reino [...] Cristo como Filho deste Pai, é o princípio hermenêutico de todas as afirmações escatológicas.” 11. Ele é o amém para todas as promessas de Deus.

Porém, o Mestre divino não deixou os discípulos sem respostas e ofereceu-lhes alguns sinais escatológicos, mas assegura que ainda não é o fim, e, de imediato, lhes propôs o que na verdade deveria preocupá-los. Antes da sua vinda, o mundo deveria ouvir o testemunho e a pregação do evangelho, que é na verdade a mensagem do reino que está presente de um modo espiritual e que deve ser levado até a última fronteira. “O reino, era esperado para o final da história mas veio na história de um modo inaugural antecipando sua vinda apocalíptica.”12

No entanto, o Senhor Jesus traça alguns acontecimentos que servirão de indicadores do tempo do fim, segundo o Dr. Russell Shedd: “Todos estes sinais apenas criam o ambiente para a manifestação do grande sinal, a pregação do evangelho até aos confins da terra.” 13 “E este evangelho do reino será pregado pelo mundo inteiro, para testemunho a todas as nações, e então virá o fim” (Mt 24.14). Ele profetiza acerca do fim falando de um período muito mais distante que a destruição de Jerusalém. Ele aponta o período em que se dará a evangelização mundial. A profecia tem uma abrangência muito maior que Mateus poderia imaginar. Nós, a Igreja apostólica, podemos presenciar nesta geração uma expansão bem maior. Segundo o pesquisador Ralph Winter, nunca em toda história da Igreja têm havido tantas conversões como em nossos dias. Porém ainda temos 98 tribos brasileiras sem conhecer Jesus. Temos milhares de povos ainda esperando o anúncio da redenção pela primeira vez. São bilhões que ainda não creram. O fim virá quando o Evangelho se espalhar entre todas as nações, fato que haverá de preceder imediatamente o estabelecimento do reino eterno.

Em todos os séculos, a Igreja deve aguardar a vinda do Senhor Jesus como a Igreja primitiva, esperando o fim em nossos próprios dias. A expectativa do fim deve ser um estímulo da ação missionária da Igreja: “Os discípulos de Jesus não deveriam esquecer sua grande tarefa por causa da expectação do reino. Esta tarefa é para ser realizada entre a ascensão de Jesus e parousia do Filho do Homem. Eles deveriam assumir a vocação à luz da salvação já revelada e doada na sua vinda ao mundo.”14

A nossa preocupação escatológica deve ser a preocupação joanina. Segundo George E. Ladd, a sua preocupação é com o destino dos homens, não com o destino do cosmos. O que inquietava o seu coração era a vida eterna, que é a entrada no reino de Deus, porque Deus se decidiu definitivamente pela salvação dos homens.

Na perspectiva do Senhor Jesus, à luz de Marcos 1.15, o reino de Deus é uma realidade presente para ser recebida agora, a qual define a posição futura e prepara o homem para entrar no Reino de Deus, que está por vir: “Sendo assim, presente e futuro são inseparáveis, o reino de Deus presente, é também uma bênção escatológica.”15. A vida do reino é experimentada em dois estágios: presente e futuro. Ela é para ser gozada tanto aqui como na eternidade. Por isso, “Falando sobre o seu retorno, o Senhor Jesus não fala de um segundo evento escatológico, mas da consumação e da fruição que está sendo trazida ao cumprimento.”16

Fica claro, então, que a Igreja deve lidar com a tensão do reino que já veio e o reino que virá. “Quando os profetas do Antigo Testamento declaravam: ‘O dia do Senhor está perto’(Is 56.11; Jl 3.14; Zc 1.14), eles ainda tinham uma perspectiva futura. Eles eram capazes de sustentar o presente e o futuro juntos numa tensão não resolvida. A tensão entre a iminência e a demora numa expectação do fim é uma característica de toda escatologia bíblica.” 17

O Senhor Jesus trabalhou com seus discípulos para fazê-los entender essa tensão. Ele mesmo se colocou como o reino escatológico de Deus que emergiu dentro da história. “Para Jesus, a vinda do Reino equivale à vinda de Deus em pessoa. A vinda do reino para Jesus é, em primeiro lugar, a manifestação da soberania do que Deus mesmo fará, é a realização da santificação do seu Nome. E neste sentido o Reino de Deus, para Jesus, é exclusivamente obra de Deus.”18 A era messiânica chegou, e as profecias nele se cumpriram. Após a descida do Espírito Santo, foi possível os discípulos perceberem essa verdade, mesmo ainda sob a tensão do tempo.

Quando o apóstolo Pedro se levantou no dia de Pentecostes, explicou aos seus ouvintes a vinda do reino na pessoa de Cristo: “Mas Deus cumpriu o que antes havia anunciado pela boca de todos os seus profetas: que o seu Cristo iria sofrer.” E imediatamente revela a expectação da sua vinda: “... e ele envie o Cristo, que já vos foi predeterminado, Jesus. É necessário que o céu o receba até o tempo da restauração de todas as coisas, sobre as quais Deus falou pela boca de seus santos profetas, desde o princípio” (At 3.18,20,21).

Pedro anuncia que Jesus veio e que ele virá. O reino de Deus é o desenrolar da história, tem um já e um ainda não. É a história que se cumpre desde os tempos passados em toda a revelação veterotestamentária, que se cumpriu nos tempos da comunidade neotestamentária, que se cumpre hoje com o avanço da Igreja no cumprimento da sua missão, e que se cumprirá até que ele venha. Por isso, os que estão no reino não devem deixar de clamar: Venha o teu reino! Esta é a meta da história, o reino escatológico.

Refutando os escarnecedores que julgavam a demora do cumprimento da promessa da sua parousia, com a qual viria o reino escatológico em sua plenitude, Pedro declara:

Primeiro — A fidelidade da Palavra de Deus — A promessa da sua vinda é tão certa, como os céus e a terra que agora existem, porque a Palavra do Criador, que trouxe o universo à existência é a mesma que procede da boca do Senhor garantindo seu segundo advento. (2Pe 3.5)

Segundo — O juízo divino é inevitável! Assim como o dilúvio expressou o juízo divino para a geração de Noé, o juízo final é uma realidade porque “Os céus e a terra de agora têm sido guardados para o fogo, reservados para o dia do juízo e da destruição dos homens ímpios” (2Pe 3.7).

Terceiro — A demora julgada da sua vinda é uma expressão da longanimidade de Deus em harmonia com o propósito de sua graça, necessária para a plenitude dos salvos ser alcançada: “O Senhor não retarda a sua promessa, [...] pelo contrário, Ele é paciente para convosco” (2Pe 3.9). O caráter misericordioso de Deus tarda a sua ira e o julgamento final. Ele espera que o homem se arrependa e aguarda o retorno das ovelhas perdidas. Sua paciência também é aplicada à Igreja que tem sido falha na sua missão. Deus tem trabalhado com longanimidade em suportar a nossa indiferença com a situação dos povos. Para entender a sua paciência, precisamos olhar para o seu caráter bondoso. “A bondade radical de Deus apareceu no meio dos homens através de Jesus [...] Ele integra a sua compreensão de Deus como Pai bondoso dentro do seu anúncio da vinda do reino, da sua mensagem escatológica.”19

Quarto — A sua aparente demora prova seu amor pelos pecadores. Porque Deus ama, ele continua a dar oportunidade para o arrependimento. Só ele na sua onisciência sabe o horror de uma eternidade, em que o fogo não queima e em que haverá choro e ranger de dentes (Mt 13.42; 25.41; Ap 21.8).
Sua compaixão pelos já alcançados deve ser revelada aos bilhões que ainda estão sob a ira da condenação eterna. A misericórdia divina é tão infinita que ultrapassa qualquer cômputo de tempo.

Quinto — A sua longanimidade sustenta o seu querer: “não quer que ninguém pereça, mas que todos venham a se arrepender.” (2Pe 3.9) Como porém se arrependerão se não ouvirem do seu perdão? E como ouvirão se não há quem pregue? E como pregarão se não forem enviados? Diante desse desafio, Pedro fala que devemos esperar e apressar a vinda do Dia de Deus (2Pe 3.12). Só há uma forma de antecipar a sua vinda: pregar as boas-novas a cada criatura, e fazer discípulos de todas as nações! Temos o grande privilégio e a grande responsabilidade de apressar a vinda do Senhor. “Lembrando que a graça preocupa o Senhor mais do que o juízo.”20 Por isso, a Igreja deve assumir o compromisso da obediência missionária e cumprir a sua missão — evangelização mundial.

Sexto — A longanimidade é prova da sua justiça. O Senhor Jesus declarou para Israel: “Enchei vós, pois, a medida de vossos pais [...] para que sobre vós recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra” (Mt 23.32,35). O nosso Deus tem uma medida extensa para suportar a iniquidade, porque, quando estabelecer o julgamento, terá todas as provas necessárias para aplicação da sua justiça que é perfeitamente reta. A resposta divina ao clamor dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam foi que repousassem, ainda por pouco tempo, até que também se completasse o número dos mártires. Então, ele julgará o sangue dos justos (Ap 6.9-11).

Sétimo — Pedro responde que Deus tem o tempo determinado, porque ele não cronometra o tempo como nós. Ele é o Senhor do tempo, porque “... para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (v.8). Então não há demora. A nossa fé deve formar uma nova mentalidade, pondo-nos em direção a uma nova categoria de tempo, a eternidade.

Conclusão:
Que posição devemos tomar diante da realidade do reino já presente e do reino futuro, ou o reino espiritual e o reino escatológico?

Para o reino presente devemos: ser responsáveis pela expressão do reino na era presente, isto é, não viver alienado do mundo, mas influenciá-lo com o nosso testemunho de vida, com uma conduta digna e uma ética cristã, que possa ser a expressão do reino de Deus. Com um compromisso sério com a missão integral da Igreja, devemos lutar pela transformação social como sal e luz do mundo, fazendo diferença em todos os segmentos da sociedade. Devemos expressar o caráter do reino em todas as suas dimensões, e isso não significa fazer algo para Deus, mas o como fazemos. Porque servir a Deus está muito mais relacionado com o como fazemos do que com o que fazemos. Não importa se temos formação teológica e missiológica, se usamos tecnologia de ponta no nosso ministério ou se somos um simples membro da igreja, se trabalhamos de tempo integral ou se usamos a nossa profissão a serviço do reino, o que importa é que tudo que façamos para Deus expresse as virtudes do seu reino. “Visto que, o reino de Deus não é simples sinônimo de justiça e paz social, mas é uma nova ordem de todas as coisas, de tudo que é bom, justo, puro e de tudo que compõe a realidade da vida presente e porvir em todas as suas dimensões.”21

Para o reino futuro devemos: ser responsáveis pela expansão do reino. É preciso possuir um senso de urgência sentindo a pressão da iminência do tempo do fim e estar consciente de que a vinda do reino escatológico em sua plenitude é precedida pela pregação do evangelho. Por isso, devemos dispor a nossa vida e tudo que temos para cumprir a missão de expandir o reino entre todas as nações. Comprometer-nos com a obediência missionária, como participante ativo na evangelização mundial, seja na missão de interceder, na missão de prover o sustento financeiro, na missão de enviar, na missão de ir e proclamar que as bodas do Cordeiro já estão preparadas, e que ainda há lugar, pois urge que a Casa do nosso Senhor se encha. Precisamos depender da sua presença até a consumação dos séculos, assegurando-nos que a tarefa continua inacabada até que ele venha. Outro componente deve ter lugar em nossa perspectiva escatológica, a certeza, na linguagem apostólica, a firme esperança de que estaremos diante do trono de Deus e do Cordeiro, com aqueles que procedem de toda tribo, língua, povo e nação. Porque cumprimos a nossa missão, poderemos proclamar juntos e em grande voz: “o Cordeiro que foi morto é digno de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor” (Ap 5.9,12).
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Bibliografia
1 SCHWAMBACH, Claus. Escatologia. Apostila do Curso Avançado em Teologia e Bíblia. Faculdade Luterana de Teologia do CETEOL, S. Bento do Sul, 2001, p. 3.
2 NEUTZLING, Inácio S. J. O Reino de Deus e os pobres. Loyola, São Paulo, 1986, p. 50.
3 SCHWAMBACH, Claus. Escatologia. Apostila do Curso Avançado em Teologia e Bíblia. Faculdade Luterana de Teologia do CETEOL, S. Bento do Sul, 2001, p. 3.
4 GOULD, Stephen Jay. Entrevistas sobre o fim dos tempos. Rocco, Rio de Janeiro, 1999, p. 13,15,16.
5 GOULD, Stephen Jay. Entrevistas sobre o fim dos tempos. Rocco, Rio de Janeiro, 1999, p. 18.
6 PAGANÈLLI, Magno, “...E então virá o fim.” Bom Pastor, São Paulo, 1995, p. 53.
7 BRAKEMEIER, Gottfried . O Reino de Deus e esperança Apocalíptica. Sinodal, S. Leopoldo, 1984, p. 26.
8 LINHARES, Osmir Araújo Análise de Isaías. Apostila do curso de Bacharel em Teologia com concentração em Missiologia. Seminário do Betel Brasileiro, São Paulo, 2001.
9 BRAKEMEIER, Gottfried . O Reino de Deus e esperança Apocalíptica. Sinodal, S. Leopoldo, 1984, p. 40.
10 KIRSCHNER, Estevan F. Mateus 28.18-20. Missão conforme Jesus Cristo. Revista Vox Scriptural, v. 6, n º2, Dez/1996 , p. 40.
11 NEUTZLING, Inácio S. J. O Reino de Deus e os pobres. Loyola. São Paulo, 1986, p. 63.
12 DUSILEK, Darci. “Missão Integral e Escatologia” em A Missão da Igreja. Missão Editora, 1994, p. 90.
13 SHEDD, Russell. Bíblia Shedd. Ed. Vida Nova, 1998, p. 1370.
14 RIDDERBOS, Herman. The Coming of the Kingdom. The Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1962, p. 517.
15 LADD, George Eldon. A Theology of the New Testament. Library of Congress Cataloging in Publication, 1977, p. 301.
16 Idem, p. 303.
17 Idem, p. 210.
18 NEUTZLING, Inácio S. J. O Reino de Deus e os pobres. Loyola, São Paulo, 1986, p.40.
19 NEUTZLING, Inácio S. J. O Reino de Deus e os pobres. Loyola, São Paulo, 1986, p. 60-61.
20 SHEDD, Russell. Bíblia Shedd. Vida Nova, 1998, p. 1744.
21 BRAKEMEIER, Gottfried. O Reino de Deus e esperança Apocalíptica. Sinodal, S. Leopoldo, 1984, p. 17.

  • AUTOR
Durvalina B. Bezerra

Durvalina B. Bezerra

É mestra em educação pela UP Mackenzie,  diretora do Seminário Betel Brasileiro (São Paulo), coordenadora da Rede de Mobilização de Mulheres de Ação Global para o Estado de São Paulo e vice-presidente do Conselho Nacional de Oração, autora dos livros A missão de interceder (Londrina: Descoberta, 2001) e Ministério cristão e espiritualidade (Belo Horizonte: Betânia, 2007).

FONTE: http://www.vidanova.com.br/teologiadet.asp?codigo=131