INTRODUÇÃO
O livro de Neemias é principalmente a história de um grande líder, de um grande povo ou será que de um grande Deus?
Com certeza, Neemias relata uma grande transformação operada pelo único Deus através de um dos maiores líderes de Israel, para fazer um grande povo. Sempre que se fala do livro de Neemias, discorre-se sobre as qualidades excepcionais de liderança do personagem central do livro. Pela narrativa em primeira pessoa, não era de se esperar que ele lançasse sombras profundas sobre as suas características, por mais autêntico que tentasse ser.
Há, no entanto, uma mensagem mais ampla e de uma aplicação mais abrangente no livro de Neemias do que o modelo de líder. Percebe-se que, à medida que a narrativa prossegue, ocorre uma transformação de proporções gigantescas no povo de Deus. Não constatamos somente profundas mudanças sociais, econômicas e políticas; percebemos também sentimentos fortes agitando os relacionamentos entre os personagens desta história em transformação.
O COMEÇO E O FIM DA HISTÓRIA
O estágio inicial da narrativa de Neemias um povo em desgraça, evidente não só nas muralhas em ruínas e nos portões quiemados de Jerusalém, porém ainda mais na falta da estrutura social que pudesse organizar e dar conforto a um povo. A notícia que Neemias recebeu de sua pátria é: “Os restantes, que não foram levados para o exílio e se acham lá na província, estão em grande miséria e desprezo; os muros de Jerusalém, estão derribados, e as suas portas queimadas a fogo” (1.3). Deduzimos, portanto, que haja muita dor, tristeza, choro e lamentação. A verdade é que eles estavam “em grande angústia” (9.37), mesmo que a esta altura do desenvolvimento da história várias mudanças já tivessem acontecido.
Surpreendentemente, na segunda metade do livro começa-se a ouvir um tom em grande parte diferente e positivo, formas cada vez mais concretas, uma nova ordem que é acompanhada de muita alegria e celebração. A festa para comemorar esta nova ordem começa e parece não ter mais fim: “celebraram a festa por sete dias, no oitavo dia houve uma assembleia solene, segundo o prescrito” (8.18b). O júbilo é tão grande que em um só versículo há cinco referências à alegria do povo (12.43). Evidentemente, algo muito especial aconteceu: ocorreu uma transformação. O livro é, portanto, a história desta tremenda transformação: de tristeza e lamentação para alegria e celebração.
Em Neemias há temas teológicos importantes, mas sem discussões teológicas demoradas. É um livro incomparavelmente prático, como toda boa teologia deveria ser. Os fatos históricos que formam o arcabouço para a mensagem de Neemias são conhecidos. Não há necessidade - e nem espaço aqui - para nos delongarmos neste espaço. O próprio livro não entra nesta discussão; simplesmente aceita os fatos como fundamentais para a transmissão da mensagem do “Deus grande e temível!” (1.5)
É verdade que, por um lado, esta história é escrita por um grande Deus. Mas, por outro, também há a participação de um povo, que cresce e se desenvolve naquilo que Deus quer, à medida que o tempo passa e todos participam. como é esse povo que, com a energia dos seus homens, mulheres, jovens e crianças, e com a sabedoria e a herança dos seus idosos, escreve, como coautor de Deus, este capítulo tão rico da sua história?
A CAMINHADA PARA O FIM
Um povo que chora e ora
A situação relatada a Neemias e depois constatada por ele in loco é dramática. O autor retrata o quadro de Jerusalém e seus habitantes com cores cinzentas mas fortes quando se fala de grande miséria e desprezo, dos muros derribados, das portas quiemadas (1.3), da cidade assolada (2.3), de miséria, opróbrio (2.17) e da zombaria de Sambalá (4.1). A situação se torna crítica diante do ataque iminente dos inimigos que moram nas proximidades de Jerusalém. A situação é tão trágica que Sambalá zomba dos reconstrutores dizendo: “Renascerão, acaso, dos montões de pó as pedras que foram queimadas?” (4.2)
Tudo isso provoca uma tristeza muito profunda em Neemias e no povo de Israel. Todos reconhecem que o presente é consequência dos seus pecados no passado. Neemias, ao ouvir as más notícias, senta, chora e se lamenta por vários dias (1.4), dái confessando em nome do povo (1.6-7). Mesmo diante do rei, Neemias não consegue esconder a sua tristeza: “Como não me estaria triste o rosto, se a cidade, onde estão os sepulcros de meus pais, está assolada e tem as portas consumidas pelo fogo?” (2.3). Mais tarde, o povo todo reunido veste pano de saco e faz confissão “dos seus pecados e das iniquidades de seus pais”, ficando uma “quarta parte do dia” nesta atitude diante de Deus (9.2-3). Há um sentimento de vergonha e tristeza tanto por causa da fraqueza e insegurança diante dos inimigos (2.17) quanto pelo arrependimento sobre seus pecados (9.1-3, 33-35).
Mas o choro não é só demonstração de arrependimento. Nesta história, o choro não leva ao desespero, mas à fonte da esperança. A miséria e a humilhação levam o povo à oração. A oração de Neemias e do povo é de uma riqueza impressionante (1.5-11; 9.5b-37, além de muitas outras passagens que mostram um povo que ora). Na sua adoração reconhecem a grandeza de Deus (1.5) e que Deus é o criador de tudo e de todos (9.6). Proclamam a Deus como Senhor da história (9.7, 21-25) mesmo que ele use a história para disciplinar o seu povo (1.8, 9.27,30). Curiosamente, a misericórdia de Deus é elogiada muitas vezes (1.9; 9.17; 19,28,31). O povo também não esquece que o seu Deus é aquele que supre as suas necessidades inclusive no deserto (9.20).
Portanto, o povo não só adora, mas mostra a sua confiança neste Deus ao clamar por proteção (4.9), ao pedir pelo favor do rei (1.11; 2.4), e até ao orar pela destruição dos inimigos (4.4-5). O próprio Neemias mostra seriedade na sua oração ao dedicar-se por um tempo ao jejum pelo seu povo (1.4) e permanece em oração diante do Senhor “dia e noite” (1.6). Da mesma forma, o povo se dedica de corpo e alma à oração ao gastar horas em adoração e confissão diante de Deus. Mas não só em períodos específicos e prolongados de prostração diante de Deus notamos a dependência deste povo do seu Deus. Também nas mais diversas situações da reconstrução e tensões relacionadas a ela, ouvem-se pedidos lançados a Deus para que ele intervenha (2.4).
É evidente, pela história do livro, que há resposta às orações dos judeus. Neemias testemunha da presença de Deus quando diz: “a boa mão do meu Deus era comigo” (2.8; cf. 4.4-5; 4.15). A mais significativa de todas, sem dúvida, é a reconstrução não só dos muros e a organização do templo, mas com isso tudo, a reconstrução do povo de Israel. Não-meu-povo se torna novamente Meu-povo.
Para um povo que se encontra em profunda crise - tristeza e lamentação - e deve passar para um estado de alívio e reestruturação - alegria e celebração - o choro e a oração são caminhos essenciais. Mas são necessários também muito trabalho e obediência à lei de Deus.
Um povo que trabalha e obedece à Palavra
Deus é construtor da história do povo de Israel. Neste capítulo da história de Israel ele achou parceiros à altura. O trabalho começa antes mesmo da ação visível da reconstrução. começa na iniciativa corajosa de mudar a inércia da história. Essa iniciativa reflete uma disposição muito grande de Neemias e do povo de Israel de correr riscos. Quando Neemias se coloca diante do Rei Artaxerxes, não tem a certeza do consentimento para o seu projeto. Mesmo assim ele não se itimida (2.1-6). O povo sente que os inimigos começam a se insurgir contra a reconstrução, mas está disposto a correr o risco (4.10-14). Na iniciativa de se tentar mudar o curso da história, percebe-se também o planejamento e a atitude de dependência do Deus que vai dar as diretrizes para todo o trabalho. Neemias primeiro faz uma vistoria das condições da cidade e principalmente dos muros para depois compartilhar o plano que Deus colocou no seu coração Evidencia-se aqui novamente a parceria entre Deus e Neemias: Deus tem um plano, mas Neemias trabalha para elaborá-lo nos seus detalhes.
Não só de oração, jejum e de planos vive o povo de Israel em Neemias. Chega a hora de por mãos à obra. O desafio de Neemias é: “vinde, pois, reedifiquemos os muos de Jerusalém” (2.17). E a resposta vem imediata: “Disponhamos-nos, e edifiquemos”. Eles não esperam para começar: “E fortaleceram as mãos para a boa obra” (2.18). Mesmo diante da oposição, a disposição do povo continua clara: “O Deus dos céus é quem nos dará bom êxito; nós, seus servos, nos disporemos e reedificaremos” (2.20).
O trabalho começou de uma forma disciplinada e ordenada, como nos relata todo o capítulo três. Como uma tempestade de nomes parece ter invadido o texto neste capítulo, assim a poeira deve ter subido em nuvens ao céu com o início do trabalho no muro. A história mostra um agir e trabalhar frenético, só interrompido por questões de emergência, como por exemplo a ameaça do ataque inimigo.
Além da disciplina, organização e a dedicação ao trabalho, destaca-se nesta primeira parte do livro a forma como o povo se agrupa para trabalhar. Há agrupamentos e associações de pessoas trabalhando no muro que chamam a nossa atenção: sumo sacerdote e sacerdotes (3.1); homens de Jericó (3.2); filhos de Hassenaá (3.3); Salum e suas filhas (3.12); ourives e mercadores (3.32). Num primeiro momento notamos que grupos homogêneos, originados por profissão, chamado de Deus para o sacerdócio, ou convivência numa mesma região geográfica, trabalham unidos em partes designadas do muro. Em segundo lugar observamos que há famílias que também se unem para reedificar uma parte específica do muro.
Adiante podemos notar também que há pessoas e grupos de pessoas destacadas para trabalharem na parte do muro defronte a sua casa, como por exemplo os sacerdotes em 3.28, e os cidadãos Zadoque e Mesulão em 3.29-30. Na hora de um trabalho deste tipo, certamente a motivação cresce com o fator da proteção ao próprio lar.
O trabalho é realizado em um tempo curtíssimo para a abrangência da obra: 52 dias (6.15). Há outras formas de trabalho ainda relatadas no livro: a reparação das injustiças sociais (cap. 5); a organização do templo e do serviço no templo para um culto que fosse agradável a Deus (cf. cap. 10); o repovoamento da cidade de Jerusalém (11.1-2). Tudo fala de muito esforço, disciplina, organização, submissão e suor para que pudesse ocorrer a tão esperada transformação.
Se olharmos um pouco mais a fundo os motivos para uma dedicação tão prodigiosa ao trabalho, veremos que na base está uma atitude sólida de obediência à lei de Deus. Tanto Neemias quanto os líderes - e também o povo - querem fazer o que está no coração de Deus. Esta atitude não existe só em relação ao plano de Deus da reconstrução dos muros, mas também em relação à vontade de Deus para a reconstrução do povo, o que significa grandes sacrifícios e humilhações. Quando, por exemplo, muitos judeus são acusados de explorarem os seus irmãos, eles se calam, sem terem explicação para o fato (5.9). Quando são desafiados a repararem este erro, a resposta é clara: “Restituir-lhe-emos...” (5.12).
O capítulo oito fala do prazer e da sede que o povo tem de obedecer à lei de Deus. O povo pede que a lei seja trazida para a leitura pública (8.1), Esdras a traz, e homens, mulheres e todos que podem entender se reúnem (8.2) e então “com os ouvidos atentos ao livro da lei” prestam atenção à leitura que vai “desde a alva até o meio-dia” (8.3). Mas não é só vontade de ouvir; existe emoção e uma atitude de devoção perante a palavra de Deus. Os líderes e levitas fazem a sua parte: leem e explicam a lei para que o povo entenda o que se lê (8.7-8). Todo o povo se comove coma leitura e a compreensão da lei. Há celebração e compaixão para com os necessitados, pois compartilham com estes uma refeição de festa.
A vontade de entender a lei é tão grande que no dia seguinte os cabeças de famílias, os sacerdotes e os levitas se ajuntam a Esdras “para atentarem nas palavras da lei” (8.13). A seriedade da busca pela vontade de Deus é revelada no fato de que ao acharem orientações práticas sobre a festa dos tabernáculos, colocam-nas em prática logo em seguida (8.14-18).
As provas maiores de que a obediência não vale só para os dias de celebração estão na colaboração do povo nos dízimos e ofertas (10.32-39), na santificação do sábado (10.31) - acabando com o comércio com os mercadores da região naquele dia - e na separação dos casais em que um dos cônjuges era de povos pagãos (10.30). O autor do livro resume a atitude do povo em relação a estes aspectos assim: “convieram... num juramento de que andariam na lei de Deus...” (10.29). É verdade que com a ausência de Neemias por um tempo, há recaídas graves nestes aspectos. Mas com a volta dele, nota-se uma vez a disposição do povo para se purificar pela obediência à verdade (cf. 1Pe. 1.22).
Para chegar ao patamar da estabilidade, onde finalmente vai haver tranquilidade para celebrar a alegria da reconstrução, é necessário que o povo também tenha e siga uma grande liderança.
Um povo que tem e segue uma grande liderança
Por que os povos não têm grandes líderes? Neemias nos mostra que um verdadeiro líder do povo de Deus é, em primeiro lugar, chamado por Deus. Neemias é um homem em cujo coração o Senhor colocou um plano para Jerusalém (2.12). Quando Neemias lança o desafio da reconstrução aos líderes, ele pode dizer: “E lhes declarei como a boa mão do meu Deus estivera comigo” (2.18), pois ele se sabe chamado e conduzido pelo magnífico e temível Deus para liderar a reedificação.
Outra condição que favorece o aparecimento de um grande líder é a situação de crise da reconstrução dos muros e de uma nação. Os primeiros sete capítulos estão repletos de detalhes da desgraça, da tristeza, do caos e do clamor por uma reedificação. Mas esta condição só permite o ministério de um líder com soluções para os grandes e pequenos problemas de um povo, se este estiver disposto a aceitar o líder. Só tem um grande líder o povo que quer aceitar eta liderança.
Na pessoa de Neemias encontramos certamente o homem com uma série de qualidades ideais para realizar um trabalho de transformação profunda no povo de Deus. Neemias, em primeiro lugar, tem um grande Deus. Já na sua oração inicial ouvimos: “Ah Senhor, Deus dos céus, Deus grande e temível!” (1.5). O livro está repleto de um temor pela majestade e santidade do dia-a-dia ele pode dizer: “Então o meu Deus me pôs no coração que ajuntasse os nobres...” (7.5). Neemias revela a consciência de que a obra é de Deus, pois sabe que o plano foi colocado no seu coração por Deus (2.12) e tem certeza da provisão de Deus para a eventual batalha: “o nosso Deus pelejará por nós” (4.20).
O grande líder também é um homem que não tem receio de confrontar autoridades, sejam elas de povos inimigos (2.19-20; cap. 4), ou líderes do próprio povo que se desviaram dos princípios de justiça estabelecidos por Deus (cap. 5). Ele também sabe ser o modelo e exemplo no sacrifício, no trabalho e no despreendimento em relação às coisas materiais (5.13-19). Finalmente, Neemias mostra, na administração deste projeto enorme, a habilidade de formar e trabalhar com uma grande equipe de líderes de todos os tipos. e níveis. O livro está repleto de referências a nobres, magistrados, levitas, sacerdotes e príncipes (e.g., 4.19; 9.38; 11.1). O copeiro do rei sabia coordenar, supervisionar e motivar os seus liderados.
Neemias não é só a história de um líder bem sucedido, mas também a história de um povo bem sucedido em seguir o líder que Deus lhe deu. Quando o desafio lhes é lançado, o povo responde: “Disponhamo-nos e edifiquemos” (2.17-18). Quando são confrontados com a exploração dos fracos decidem-se a restituir o que foi tirado dos desfavorecidos (5.11-12). Quando, mais tarde, são desafiados a pôr em prática preceitos da lei quanto aos dízimos, o bom uso do sábado e a pureza do povo contra a infiltração de deuses pagãos, todos concordam em andar na lei de Deus e em guardar e cumprir todos os mandamentos, juízos e estatutos (10.28-29). Além das grandes ordens a serem cumpridas, há uma infinidade de pequenas tarefas que precisam ser feitas para que a harmonia, a alegria e a celebração penetrem em todos os recônditos físicos, emocionais e espirituais da vivência humana. Não só a cooperação no muro, mas também a distribuição de tarefas no serviço do templo e a organização da vida em comunidade reedificada mostram um povo disposto a seguir a visão que Deus lhes passou pelos seus líderes.
CONCLUSÃO
Do começo ao fim do livro de Neemias, ouve-se uma mensagem que começa com sons dissonantes e desafinados, tristes e melancólicos, mas que, através de um povo que chora e ora, que trabalha e se dispôs a obedecer à Palavra, e também que valoriza e segue a liderança que Deus lhe deu, chega a um final que, se não é um final absolutamente eufórico, com certeza é muito diferente do que o triste começo. No início da reconstrução os outros povos já percebem que Deus está neste projeto (6.16). Depois deste prelúdio tímido, no capítulo oito entra definitivamente em cena a harmonia da restauração. após entender a leitura da lei, o povo percebe que precisa se alegrar comendo, bebendo e compartilhando a sua celebração com os necessitados (8.12). Expressões como “e houve mui grande alegria” (8.17) e “celebraram a festa por sete dias” (8.18) refletem bem o sentimento e a harmonia existentes. Mas é no capítulo 12 que a celebração é descrita com a devida profundidade e riqueza de detalhes. Os israelitas preparam tudo para a festa “a fim de que fizessem a dedicação com alegria, louvor, canto, címbalos, alaúdes e harpas” (12.27). Houve então a purificação e a procissão dos dois coros para louvarem a Deus na celebração (12.30-31).
A explosão de alegria vem no versículo 43: No mesmo dia ofereceram grandes sacrifícios, e se alegraram; pois Deus os alegrara com grande alegria; também as mulheres e os meninos se alegraram, de modo que o júbilo de Jerusalém se ouviu até de longe.
As pedras que tinham sido queimadas na destruição dos muros pelos babilônios não renasceram do monte de pó, mas um povo renasceu da ruína. Houve uma grande transformação que trouxe o povo da tristeza e da lamentação para alegria e celebração.
AUTOR
Valdemar Kroker
Pastor, escritor evangélico, tradutor e revisor do Comentário Bíblico Vida Nova.
FONTE: Vida Nova on line
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