Quando o ônibus a deixa nas ruas novamente, ela não sabe como vai atravessar a avenida de tráfego insano. Ela nunca fez isso antes. Ela nunca fez tanta coisa antes. Avista o táxi. E faz sinal, como viu sua irmã mais velha fazer um dia. Entra no táxi e diz: “Me leve ao tribunal”. O motorista estranha, mas nada diz. Na corte, há tanta gente, e ela não sabe a quem se dirigir. Então avista a mulher numa mesa e anuncia: “Quero falar com o juiz”.
A mulher faz muitas perguntas. Ela só repete: “Quero falar com o juiz”. Finalmente a mulher a leva até uma sala onde, ao longe, sentado atrás de uma mesa, ela vê um homem parecido com aqueles que viu na televisão do vizinho. Espera a sua vez pensando no mar que sonha conhecer. Ela tem um oceano inteiro na cabeça, como todas as crianças que precisam imaginar para vencer dias em que a sobrevivência é arrancada minuto a minuto. A sala se esvazia. É a sua vez. Ela se posta diante do juiz. Diz:
– Quero o divórcio.
Era 2 de abril de 2008. Em Sanaa, capital do Iêmen. Neste dia, Nujood Ali, uma menina de 10 anos, torna-se maior do que qualquer das lendas de sua infância brutalmente interrompida. Sozinha, metida no véu preto das mulheres casadas, ela atravessa um mundo para transformá-lo para sempre.
Sua história em livro, escrita com a ajuda de uma jornalista radicada em Beirute, Delphine Minoui, acaba de ter a versão em inglês lançada nos Estados Unidos – I am Nujood, Age 10 and Divorced (“Eu sou Nujood, 10 anos e divorciada” – Three Rivers Press, 2010).
O que me capturou na história de Nujood, além do extraordinário explícito, foi compreender que tipo de força moveu uma menina de 10 anos a vencer as ruas de uma cidade caótica e séculos de submissão para alcançar a mesa do juiz de um país muçulmano para pedir o divórcio. Quando fazem a ela a pergunta – como você foi capaz? –, a pequena Nujood apenas diz: “Eu não suportava mais”.
Era isso. Ela não suportava mais.
Olho para o globo na minha escrivaninha xerife – tenho um mini que levo a todos os lugares onde trabalho para nunca me esquecer que o mundo é grande e a pequenez não vale nem a pena nem a vida. Quero compreender melhor Nujood. O Iêmen é distante para mim.
As últimas notícias que ouvi sobre esse país tão longe de nós contavam que a Al Qaeda havia transferido sua base de operações terroristas para lá. No passado, os romanos chamavam a região de “Arábia Feliz”, porque suas terras eram as mais férteis e irrigadas da desértica península arábica. A rica rainha de Sabá, citada na Bíblia, era dessa terra solar.
A região teve muitos conquistadores, de turcos otomanos a britânicos. O Iêmen do Norte tornou-se republicano nos anos 60 e sofreu uma sucessão de golpes militares durante os 70. Na mesma época, o Iêmen do Sul tornou-se o único estado comunista do Oriente Médio. Apenas em 1990 o Iêmen fundiu-se em uma só nação, até hoje assolada por conflitos separatistas que já geraram mais de 150 mil refugiados.
Não por acaso a Al Qaeda acha que é uma boa ideia se estabelecer nesse país convulsionado de 23,6 milhões de habitantes: além de preencher os requisitos geográficos, 41% da população é analfabeta, quase metade vive abaixo da linha de pobreza e o desemprego atinge um quarto da força de trabalho.
Nujood é filha de uma dessas famílias abaixo da linha de pobreza. Migrou para a capital, Sanaa, com seus pais e irmãos, depois de serem expulsos de sua aldeia no campo em uma desavença que envolveu o estupro de uma das irmãs mais velhas. Na cidade, o pai perdeu o emprego e não conseguiu outro, os filhos passaram a vender bugigangas e a pedir esmolas nas avenidas, como fazem a maioria de seus vizinhos. Apesar de seu país ter um presidente e uma legislação unificada, o mundo de Nujood é ainda aquele que se curva à tradição e ao poder dos chefes locais. A força dos costumes revela-se no ditado popular: “Se quiser garantir um casamento feliz, case-se com uma menina de 9 anos”.
Não é uma brincadeira. Metade das meninas do Iêmen é casada por seus pais na infância e na adolescência com homens adultos. Quando o pai de Nujood anunciou que a entregara em casamento a um homem de sua aldeia, na faixa dos 30 anos, aos olhos de seu mundo não estava fazendo nada nem errado nem incomum. Mona, a irmã preferida de Nujood, levantou os olhos num movimento que deve ter lhe custado muito e disse: “Ela é muito jovem para se casar”. O pai retrucou: “Muito jovem? Quando o profeta Mohammad desposou Aïsha, ela tinha apenas 9 anos”. Depois, o pai ainda afirmou: “Ele prometeu não tocá-la antes da primeira menstruação”.
Em fevereiro de 2008, dois meses antes de postar-se diante do juiz e mudar um mundo inteiro, Nujood foi casada contra a sua vontade. E levada pelo marido desconhecido de volta à aldeia onde nasceu. Na mesma noite, foi violentada por esse homem cheirando a cebola. Nujood gritou, pediu socorro à sogra, correu e derrubou coisas pelo caminho. Silêncio. Ninguém a acudiu. Quando se sentiu queimar por dentro, e uma dor além do suportável, desmaiou.
No dia seguinte, nua e machucada, foi acordada pela sogra e pela cunhada: “Parabéns!”. E assim seguiram-se as horas de sua nova vida de criança casada, trabalhando na cozinha durante o dia, sendo estuprada e espancada à noite. Maltratada pelas mulheres da família do marido e pelas vizinhas por gritar e chorar nas madrugadas, o que consistia numa rebeldia inaceitável.
No mês seguinte, o marido a levou à capital e consentiu que ela ficasse algumas semanas na casa de sua família. Nujood achou que estaria salva. Mas o pai disse a ela que agora era uma mulher casada e seu lugar era ao lado do marido. Do contrário, estaria jogando na lama a honra da família. A mãe afirmou que a vida de todas as mulheres era assim, que era preciso se resignar e aceitar seu destino.
Com o tempo se esgotando, Nujood descobriu que estava sozinha. Como último recurso, bateu no pobre apartamento onde a segunda esposa do pai vivia com cinco filhos, à custa de pedir esmolas nas ruas. Depois de ouvi-la, a jovem mulher disse: “Você precisa ir ao tribunal”. E fechou as mãos da menina sobre o pouco dinheiro que conseguira naquele dia.
Na manhã seguinte, quando a mãe disse a Nujood que fosse comprar pão para a família, a menina atravessou o mundo e postou-se diante do juiz.
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O juiz e seus colegas acolheram Nujood. Shada Nasser, advogada iemenita e ativista dos direitos das mulheres, assumiu sua causa. Um repórter brilhante, Hamed Thabet, e a editora-chefe do jornal Yemen Times, Nadia Abdulaziz al-Saqqaf, fizeram um grande barulho na imprensa, que atravessou as fronteiras e se espalhou pelo Ocidente. Nujood começou a conhecer uma outra face da sociedade iemenita, culta e progressista, onde as mulheres não se sentiam obrigadas a cobrir o rosto e o corpo com niqabs, estudavam e elegiam seus destinos. Em 15 de abril de 2008 Nujood tornou-se a primeira esposa-criança a obter o divórcio no Iêmen. Hoje, com 12 anos, vive com sua família. No princípio, os pais e os irmãos achavam que ela tinha lançado vergonha sobre seu nome. Agora, que os royalties do livro garantem uma parte do sustento de todos, sua história tornou-se mais palatável. Em casa, não se fala sobre o que aconteceu. O irmão mais velho apenas anuncia, a voz irritada, que mais um jornalista estrangeiro está batendo na porta.
Nujood e sua irmã menor voltaram para a escola. E esta é outra face extraordinária da história de Nujood: depois de toda a violência, ela voltou a ser criança. Mais madura, mais sábia, mais doída, mais livre. Ainda assim, de volta à infância como uma criança que brinca, desenha e sonha.
Como repórter, acompanhei muitas histórias de crianças violadas de todas as maneiras. Percebi que só sobreviviam com chance de ter uma vida àquelas que conseguiam manter dentro de si algo de intacto. Uma parte delas mesmas que seus algozes não conseguiam alcançar. Com essa ínfima parcela íntegra nos confins de si mesmas, quando tinham a sorte de serem salvas, reinventavam uma vida. As que não conseguiam, as que eram violadas por inteiro, podiam seguir respirando, mas estavam mortas. E não há nada mais brutal do que o rosto de uma criança morta que respira.
Ao ler a história de Nujood, penso que com ela se passou algo assim. E, por mais paradoxal que pareça, acredito que ela tenha encontrado forças para sobreviver e para resistir porque era amada por sua família e, mesmo em meio à pobreza e a dificuldades de toda ordem, conheceu momentos de alegria. Pela memória, pela imaginação e pelo sonho, Nujood manteve sua subjetividade intacta. E, por fim, encontrou alguém que a escutou: a segunda esposa do pai, os juízes da corte.
Nujood tornou-se o fio de esperança e de possibilidade onde as meninas casadas do Iêmen podem se agarrar para alcançar um destino novo. Depois de seu exemplo, outras duas garotas, Arwa, de 9 anos, e Rhim, de 12, foram à corte pedir o divórcio. O parlamento iemenita aprovou uma lei proibindo casamentos antes dos 17 anos para ambos os sexos. Ainda que no interior do Iêmen as leis tribais e os costumes pesem mais que a legislação oficial, é um começo promissor. Na vizinha Arábia Saudita, outra criança entregue pelo pai a um homem na faixa dos 50 anos pediu o divórcio. A menina tinha 8 anos.
Este é o momento em que muitos de nós, brasileiros, suspiramos aliviados. Gratos por viver em um país menos arcaico, onde coisas assim não acontecem. O Iêmen, trazido para perto de nós por Nujood, volta a tornar-se borrado no tempo e no espaço, longe e diferente demais para nos reconhecermos nele. Exótico.
Não é o que vejo. Guardadas as enormes diferenças culturais e históricas, há muito de semelhante que deixamos de enxergar. E não apenas a prostituição infantil diante de nossos olhos nas capitais do Nordeste e do Norte, nas estradas que cortam o país, no interior de São Paulo, em todos os lugares.
Não foi o Superior Tribunal de Justiça do Brasil que, em 2009, absolveu o corredor Zequinha Barbosa e seu assessor, Luiz Otávio da Anunciação, acusados de terem feito sexo com três meninas, de 13, 14 e 15 anos, em troca de valores entre R$ 60 e R$ 80? A justificativa: as garotas já eram “prostitutas reconhecidas”. Não foi o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal do Brasil, que em 1996 absolveu um homem que tinha feito sexo com uma garota de 12 anos? O argumento: “Nos nossos dias, não há crianças, mas moças de 12 anos”.
Nessas duas decisões antológicas, é importante assinalar, não estamos falando dos fóruns estropiados dos rincões do Brasil, mas das cortes superiores. Se aplicassem a lógica contida nessas decisões, diante do pedido de Nujood os juízes do Iêmen poderiam argumentar que: 1) casamentos de meninas fazem parte da tradição do país; 2) ela já não era uma virgem, mas uma “esposa reconhecida”; 3) Não existem crianças de 10 anos no Iêmen, mas moças. E, com tantos bons argumentos, poderiam ter despachado Nujood de volta ao inferno. Benditos juízes do “exótico” Iêmen.
Para muitos – como Nujood lá do outro lado do mundo, como milhares aqui –, a Justiça não é o último recurso, mas o único que têm para conter a violência da qual são vítimas. Se ela falha ao deixar de escutar ou tarda demais, arrebenta a vida daquele indivíduo que sofre – e corrompe a todos nós.
Em 2006, busquei investigar um fenômeno novo: as viúvas-crianças do tráfico. Na periferia de Fortaleza, entrevistei uma menina que, se escrevesse um livro como o de Nujood, poderia ter o seguinte título: xxxxxx , 14 anos, viúva, uma filha. Não posso dar o nome sem violar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas ela estava lá, conversando comigo com a filha nos braços. E sua história foi contada em meu terceiro livro.
A garota vivia com um assaltante viciado em crack por vontade própria. Quando ele foi assassinado, tinha 13 anos e estava grávida. Este não era um drama para ela. A tragédia era voltar para o barraco da família. Tinha escolha? Nenhuma.
Em 1997, numa reportagem sobre incesto, entrevistei uma menina de 12 anos que havia sido estuprada pelo pai numa das maiores cidades do interior do Rio Grande do Sul. Ao longo de seu terrível relato, ela me contou que agora namorava o policial que havia atendido o seu caso. Ou seja: aquele que tinha, oficialmente, como representante do Estado, o dever de defendê-la dos abusos do pai e de qualquer outra violação, botou o pai na cadeia e passou a abusar dela. Eu o denunciei. Mas com certeza não é o único caso.
Conto estas histórias aqui porque não acredito no jornalismo que transforma o outro em exótico. Aquele que permite aos leitores acreditarem que a violência e a injustiça pertencem ao outro – e, neste caso, ao outro do outro lado do mundo. Prefiro que meus leitores não respirem aliviados nem se sintam tão a salvos. O mundo só começa a mudar quando olhamos para dentro de nós – e para o nosso quintal – com a verdade possível.
O que mais me fascina, na história de Nujood, é a força que moveu essa criança de 10 anos a atravessar sozinha a cidade e vencer séculos de opressão para dizer uma frase que continha o mundo inteiro: “Quero o divórcio”. Nujood não dá a si mesma nenhuma qualidade especial. Com sinceridade, ela apenas diz a todos que insistem em compreender o extraordinário que ela contém: “Eu não suportava mais”. Em sua simplicidade, ela não permite que lhe atribuam algo de especial – e então outras meninas não poderiam seguir o mesmo caminho por não possuir este algo a mais.
Acho que é isso que ela também nos dá. Nas pequenas e nas grandes tragédias da vida de cada um de nós – e de nossa comunidade, de nosso país, do planeta – às vezes, tudo o que precisamos dizer para os outros e principalmente para nós mesmos é isso: “Eu não suporto mais”.
Estamos, então, prontos para atravessar a rua de nós mesmos. E mudar nosso pequeno mundo.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
Fonte: Época on line
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