sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O que é teologia para Karl Barth?

Já começa a emergir na resposta a essa pergunta como Karl Barth relaciona, por exemplo, teologia e espiritualidade. Senão vejamos. Já de início, o teólogo de Basiléia nos conduz a que nos demos conta da particularidade da teologia como “ciência”, particularidade essa derivada do próprio “objeto” da teologia e da tentativa de “tematizá-lo em todo alcance de sua existência – e isso dentro do caminho indicado pelo próprio objeto em questão.”[1] Teologia é, então, uma ciência muito particular, é ciência sui generis, pela própria necessidade de tematizar a Deus.[2]
Contudo, como o próprio Barth demonstra, à palavra “Deus” podem ser atribuídos os mais diversos e variados sentidos. O que redundaria numa possibilidade quase infinita de teologias, todas com possibilidade de serem até mesmo radicalmente diferentes entre si. Portanto, o primeiro passo consiste em dizer uma palavra sobre de qual “Deus” está se falando. Pois para Barth:

Não existe ser humano que, de maneira consciente, inconsciente ou subconsciente, não tenha seu Deus ou seus deuses como objeto de seu desejo e confiança mais elevados, como base de sua vinculação e compromisso mais profundos. Neste sentido qualquer ser humano é teólogo. (...) Isto se aplica não só a situações nas quais se tenta fazer valer positivamente ou pelo menos deixar valer tal divindade como quintessência da verdade e do poder de algum princípio supremo, mas também a situações nas quais se nega a existência dessa divindade: nestes casos o que acontece em termos práticos é que exatamente dignidade e função da divindade são transferidas à “natureza”, a um impulso vital inconsciente e amorfo, à “razão”, ao progresso, ao ser humano de pensamento e ações progressistas, ou, quiçá, a um “nada” redentor, considerado destino último do ser humano. Também tais ideologias aparentemente “atéias” são teologias.[3]

Então, antes de se discutir de que teologia se está falando, primeiro devemos estabelecer sobre qual Deus se quer tematizar. O teólogo e a teóloga precisa saber de qual Deus está falando. Pois se a fé tem a primazia diante do discurso teológico mais rigoroso, é necessário se perguntar em quem depositamos nossa fé.  Em quem colocamos “nossa vinculação e compromisso mais profundos.”[4] A fé nesse determinado “Deus” precede todo discurso teológico. Portanto, para que se possa definir de qual teologia se está falando, precisamos nos expressar, confessando a esse Deus. Nossa teologia seguirá conseqüentemente o Deus a quem confessamos e adoramos. Em quem depositamos nossa fé. Em se tratando de nós cristãos somos crentes em um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo. Nossa fé é trinitária.
Karl Barth ao denominar sua teologia de “teologia evangélica”, não tem como intuito tratar especificamente de mais uma “teologia protestante”. Na verdade, ele entende o adjetivo “evangélica” como sendo a tematização coerente do Deus que se revela no Evangelho.[5] Ele diz:

Uma teologia por ser “protestante”, ainda não é necessariamente evangélica. E existe teologia evangélica também no catolicismo romano e no âmbito da Ortodoxia oriental, assim como existe na área das inúmeras variações e mesmo das formas degeneradas posteriores ao evento reformatório.[6]

Não se trata, portanto, de uma questão de tentar definir a melhor teologia feita em todas essas manifestações históricas do cristianismo, mas qualificar a partir de qual referencial estamos tecendo nossos conceitos de Deus. Nesse caso, o referencial último é o Evangelho tal como podemos apreender das páginas do Novo Testamento. O adjetivo, “evangélica”, encontra aí seu solo donde brotar a tematização de Deus, o Deus do Evangelho.[7] Sobre isso esclarece ainda Karl Barth:

Designaremos com o termo “evangélico”, de forma objetiva, a continuidade e a unidade “católicas”, ecumênicas (para não dizer “conciliares”) de toda e qualquer teologia, que, em meio a todas as demais teologias e (sem que isso implique um juízo de valor ou desvalor) diferentemente delas, tenciona perceber, compreender e tornar manifesto o Deus do evangelho – quer dizer, o Deus que se manifesta no evangelho, que por si mesmo fala aos seres humanos, que age neles e entre eles – da maneira por Ele mesmo indicada. Onde se realiza o evento de este Deus se tornar objeto ou assunto da ciência humana e, como tal, origem e norma da mesma – aí existe teologia evangélica.[8]

A particularidade dessa teologia se define por seu próprio “objeto” o qual possui suas características peculiares, que a diferencia das demais “possíveis teologias”. O que não significa ausência de quaisquer elementos comuns as demais teologias e quiçá outras ciências. Mas a tarefa urgente para Barth é que possamos apontar significativamente as características nucleares dessa “ciência teológica” evangélica. Essa teologia deve sempre se ver não somente na impossibilidade de falar exaustivamente de Deus, mas igualmente “não poderá reivindicar o direito de bancar Deus neste campo.”[9] Como assevera Barth: “O Deus do evangelho é o Deus que de sua parte se acha voltado em misericórdia para a existência de todos os seres humanos, inclusive para a teologia dos mesmos.” [10]
A dimensão abscondita de Deus, imensurável, inefável, de um Deus que é Mistério, do qual não podemos dispor muito menos tematizar sem deslizes, é de que fala o Evangelho. Evangelho que nos revela um Deus que ao se revelar, desmascara mais e mais de nossa limitação e precariedade quando se trata de teologizar. Tal como diz Karl Barth, esse Deus “sempre permanece superior, não só quanto aos empreendimentos ‘dos outros’, mas também diante da teologia evangélica. Permanece o Deus que continuamente se dá a conhecer e que continuamente precisa ser descoberto e redescoberto.”[11]

A base epistemológica barthiana

Essa ciência, chamada de “ciência teológica”, está fadada ao condicionamento, à “parcialidade do discurso”, à precariedade, ao provisório, a ser sempre uma teologia inacabada, a caminho. Uma teologia consciente da necessidade premente de se rever sempre e estar “sempre se reformando”, em conformidade ao Deus que se revela por Sua própria iniciativa e por graça. Daí Barth conclui que: “A teologia evangélica é condicionada por seu próprio assunto para ser uma ciência modesta.”[12] Que segundo nosso teólogo, será em todo momento uma ciência não só modesta, mas livre, crítica e alegre. Modesta, porque se vê sempre para além da possibilidade de abarcar sem limites o Deus do Evangelho; livre, porque deixa sempre seu “objeto” agir livremente de modo a ser por esse Deus libertada; crítica, porque deve buscar a todo momento discernir e distinguir entre o ontem, o hoje, e o amanhã da presença e ações únicas desse Deus, sem perder de vista sua coerência e unidade; e alegre, por lidar com a palavra de graça desse Deus que se acha sempre voltado para o ser humano em seu Evangelho (boa notícia), como sendo o Emanuel (Deus conosco), essa ciência não poderia ser outra coisa senão uma ciência alegre.[13] Constatar essas realidades determinará radicalmente o posicionamento de todo teólogo(a) em sua aventura de tematizar a Deus. O que deveria levar-nos a mantermos sempre diante de nós a rica tradição teológica apofática, tal como nos legou o grande teólogo místico Dionísio Areopagita, conhecido também como Pseudo-Dionísio.[14]
Todavia, é com pesar que notamos a distância que a tradição teológica ocidental manteve por vezes dessa rica tradição teológica apofática quanto mais se tornara um exercício frio e especulativo, desconectada da vida e da vivência concreta do Evangelho de Jesus Cristo.  Essa “teologia descendente”, de cima para baixo, configura-se numa teologia de caráter dedutivo, sem vínculos e raízes lançadas no solo sagrado da espiritualidade cristã, que vive e se alimenta do Evangelho, no seguimento de Jesus Cristo, na força do Espírito.
A fundamentação epistemológica do teólogo de Basiléia se aproxima da tradição teológica ocidental que mais bebeu das fontes da teologia apofática e sem dúvida das contribuições do significado da teologia para Anselmo de Cantuária, a quem Barth não somente muito admirava, mas do qual se sentia devedor. Sem nos esquecermos que Karl Barth fora um profundo conhecedor dos escritos de Anselmo de Cantuária. De Anselmo, Barth apreende sua postura fundamental frente à teoria do conhecimento teologal, a partir de seu clássico axioma: fides quaerens intellectum. Ao ponto de Karl Barth escrever uma obra dedicada a essa e outras afirmações do teólogo de Cantuária.
O grande teólogo suíço começa sua aproximação do núcleo rígido do que viria a ser sua rica epistemologia teológica, tratando sobre o conceito e necessidade do intelligere em Santo Anselmo. Na percepção de Barth a intuição fundamental da qual Anselmo lança mão para sustentar sua teoria do conhecimento reside em conseguir responder a necessidade de a fé desejar ser compreendida. Ele diz: “Essa razão, a qual intelligere busca e encontra, possui nela mesma não somente utilitas (utilidade), mas também pulchritudo (beleza). É speciosa super intellectus hominum (grande brilho do intelecto humano).”[15]
Significa dizer que Karl Barth ao situar a teologia no chão da revelação bíblico-cristã, já está dando à vida de fé um lugar de destaque no labor teológico, ampliando seu horizonte epistemológico e conseqüentemente sua tessitura teológica, puxando a teologia cristã de volta a seu húmus original e fundante. O que propicia Barth falar depois, mais a fundo, acerca da Palavra como o primeiro “lugar” teológico, (os loci teologici), tal como veremos mais a frente.
Não obstante, se a ciência teológica deve ser modesta, ela também necessita, para existir, raciocinar com base em três premissas secundárias, a saber:

a) De modo geral, no evento da existência humana, em sua dialética indissolúvel, existência que se vê confrontada com a auto-revelação de Deus no evangelho; b) de modo específico: na de seres humanos que receberam o dom e a vontade de reconhecerem e confessarem a auto-revelação de Deus como tendo acontecido em favor deles; c) de modo geral e específico: na razão, i.e, na capacidade de percepção, conceituação e expressão de todos os seres humanos, inclusive dos crentes, fato este que os capacita tecnicamente a participarem, de forma ativa, do esforço de cognição teológica realizado no confronto com o Deus que se auto-revela no evangelho.[16]

Daí para Barth a teologia que emerge segundo a revelação de Deus no Evangelho ser o referencial último, aquele que desperta e potencializa a fé do ser humano, chamando-o à fé “e que com isso reivindica e ativa a totalidade do potencial intelectual humano (e não só o seu potencial intelectual).”[17] Deus desperta e dinamiza as energias humanas, potencializando-as sendo então possível canalizá-las para o saudável labor teológico.
O conhecimento de Deus na fé deve e pode ser dinamicamente transformada em bom trabalho teológico. A vocação à teologia é fundamental e constituinte do ser humano, teologia como sendo esse segundo momento, a qual deverá desenvolver uma atenção maior à presença de Deus sempre dada.
Portanto, todo ser humano é um teólogo em potencial, poderíamos dizer com Barth. Mas o desenvolvimento dessa vocação básica em direção a uma carreira teológica vai depender de diversos fatores, dentre eles a vocação à docência, à pesquisa, e etc. O teólogo é um eterno aprendiz, exercitando seu labor como quem vive sempre a garimpar palavras. Na busca de tematizar àquele que em parte não é tematizável (mistério). A teologia passa novamente a ganhar um sabor sapiencial


[1] Ibid., p. 9.
[2] Cf. Idem., p. 9. Sobre uma conceituação muito rica do que é teologia ver a excelente obra recém traduzida para o português do grande teólogo luterano alemão, Wolfhart Pannenberg: PANNENBERG, Wolfhat. Teologia Sistemática. Vol. 1. Santo André; São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2009, pp. 25-99.
[3] Ibid., p. 9.
[4] Ibid., Idem., p. 9.
[5] Cf. Ibid., p. 10.
[6] Idem., p. 10.
[7] Cf. Ibid., Idem., p. 10.
[8] Ibid., idem., p. 10.
[9] Cf. Ibid., pp. 10-11.
[10] Ibid., p. 11.
[11] Idem., p. 11. Essa parece ser a intuição dos grandes teólogos(as) da história da Igreja, como é o caso do maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner. A teologia para Rahner, dado o seu “objeto” de estudo, ao qual no processo do fazer teológico revela-se, contudo, Sujeito livre, decerto não ao lado de outros [teólogo(a)], mas sempre para além, dá-se à nós como nosso horizonte infinito. Cf. RAHNER, Karl. O dogma repensado. São Paulo: Paulinas, 1970, p. 171. Grifo nosso. Esse Horizonte Infinito denominamos Deus.
[12] Ibid., Idem., p. 11.
[13] Cf. Ibid., pp. 11-14.
[14] Sobre um excelente resumo da vida e principais intuições desse autor grego ver: TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Op., cit., pp. 104-111.
[15] BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão. Op., cit., p. 23.
[16] Ibid., p. 11.
[17] Ibid., p. 12.

Fonte: http://carocardosalutis.blogspot.com/

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