quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Arco-íris no púlpito

LUCIANA MAZZARELLI
Revista Eclésia, nº 86


Condenada pelos evangélicos, a homossexualidade desperta ainda mais polêmica quando praticada por pastores.

Sem o acompanhamento de instrumentos musicais, um grupo de pessoas na pequena igreja canta o tradicional hino Tu és fiel, Senhor. Alguns mantêm os olhos fechados; outros levantam as mãos. Vez por outra, um membro da congregação vai à frente dar testemunho sobre bênçãos conseguidas, relatos que são acompanhados pela platéia. Há ainda o momento de orações espontâneas, quando qualquer fiel pode erguer a voz, com total liberdade. Após uma liturgia simples, o pastor abre a Bíblia e prega. O tema de sua mensagem é a banalização da vida humana, baseada no evangelho de Mateus 6.19. Quem ouve o pregador pode pensar que trata-se de apenas mais uma entre tantas igrejas evangélicas que existem na capital paulista. Engano. Aquela comunidade, situada no bairro de Perdizes, é diferente. Trata se da Igreja Acalanto - Ministério Outras Ovelhas, uma congregação freqüentada, entre outras pessoas, por homossexuais que, ali, não sofrem qualquer repreensão por sua conduta. Há até aqueles que vão aos cultos acompanhados dos parceiros do mesmo sexo.

E quem está á frente do ministério alternativo é Victor Ricardo Soto Orellana, 31 anos, que há cinco anos causou muita polêmica quando foi ordenado como o primeiro pastor homossexual do Brasil. Apesar de todas as críticas que recebe desde então, ele continua firme no propósito de divulgar a chamada teologia homossexual, que consiste numa interpretação bastante liberal das Sagradas Escrituras. "Ser um pastor homossexual é ter uma experiência ímpar, uma visão do mundo original e desapegada das tradições", filosofa Victor, que já freqüentou igrejas evangélicas antes de assumir sua opção sexual. E é desta época que guarda más lembranças. "Eu queria a todo custo ser um modelo de cristão, e por isso curvava-me às imposições. Era uma fuga." Ele conta que durante bastante tempo anulou seus sentimentos, descobertos durante a conversa com um ex-colega de seminário teológico.

Mas o estopim para sua saída do armário - expressão que, no jargão gay, significa assumir a homossexualidade - foi o assédio que conta ter recebido da parte de um homem na igreja que freqüentava, cujo nome prefere não revelar. Hoje, convicto de que sua condição em nada afeta o relacionamento com Deus, Victor acredita que ninguém opta por se honro ou heterossexual. "Deus no céu se alegrou quando me decidi a assumir minha homossexualidade, pois tornei a minha vivência cristã mais fecunda e producente", comenta. O lema d Acalanto, sugestivamente, é "Tenha amor incondicional, assim como Deus teve por nós". O pastor Victor desafia: "Sou livre em Cristo. Então, permito-me o homossexualismo."

"Chamado divino" - Não é de hoje que o homossexualismo influencia as igrejas. Nos últimos 20 anos, com a redemocratização do país, tem havido bastante tolerância, por parte da sociedade, com os chamados comportamentos alternativos. Nas igrejas evangélicas, em que pese a condenação geral à homossexualidade baseada em textos bíblicos que a consideram abominação perante Deus, o tema costuma ser tratado à boca miúda. A ousadia de Victor em mostrar a cara - em que pesem o fato de que a Igreja Acalanto é uma ilustre desconhecida e que provavelmente nenhum outro evangélico, exceto praticantes e simpatizantes do homossexualismo, reconheça seu ministério - é atitude isolada, mas mostra que a influência do movimento homossexual pode cruzar uma fronteira até então inimaginável - o púlpito. E, se já há segmentos evangélicos que aceitam o homossexualismo, não é difícil encontrar quem não se escandalize com o fato de um pastor dizer se gay. Caso do pastor Mário Ribas, 31, da Igreja Anglicana Todos os Santos, em Santos (SP), bacharel em teologia pela Universidade de Princeton, na Inglaterra e mestre em ciências da religião, que prefere deixar a questão para o juízo de Deus: "Cabe ao Senhor escolher que tipo de pessoa deve chamar. Agora, se Deus tem vocacionado gays e lésbicas ao sacerdócio, é porque tais pessoas têm uma grande contribuição para dar para à Igreja", defende.

Ribas argumenta que a análise das Escrituras, "de modo austero e inteligente", mostra que todas as pessoas, independente de raça, gênero ou orientação sexual, foram acolhidas por Jesus. "Não vejo o porquê de se dizer que gays e lésbicas estão errados na sua maneira de ser." Segundo ele, sempre existiram homossexuais no sacerdócio. "Mesmo aquelas igrejas que têm uma postura muito conservadora sobre a questão e não aceitam o homossexualismo sob nenhuma hipótese não estão isentas de terem pastores gays ou lésbicas trabalhando com eles. Afinal de contas, a Igreja pertence a Deus, e não aos caprichos e preconceitos dos seres humanos." No entanto, Ribas acha problemático que um ministro religioso assuma que é gay. "Eu questiono tal atitude, pois que vantagem poderia trazer? Afinal, vida sexual é uma questão que diz respeito à privacidade de cada pessoa."

Posturas como essa, por mais liberais que pareçam, encontram eco em determinados segmentos protestantes. "O problema é que a Igreja tem a genitália no cérebro", provoca o sempre polêmico pastor Nehemias Marien, 71, dirigente da Igreja Bethesda de Copacabana, no Rio. Para ele, Deus escolhe seus ministros independentemente da opção sexual. "A vocação pastoral é divina e está muito acima das discriminações", afirma. Foi Nehemias quem, em 1998, ordenou Victor, numa cerimônia realizada no Centro de Estudos Homoeróticos da Universidade de São Paulo (USP). Bastante conhecido, nos anos 70, pelo seu profundo conhecimento bíblico - ele virou figura de destaque ao responder, durante seis meses ininterruptos, a questões sobre a Palavra de Deus num programa popular de TV, a ponto de ser chamado de "o pastor da Bíblia" -, Marien, com o tempo, adotou uma posição, digamos, pouco ortodoxa no seu ministério. Ele não se nega, por exemplo, a abençoar uniões de homossexuais.

Marien iniciou seu ministério na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), há 45 anos, mas acabou defenestrado por aquela denominação em 1984, após enfrentar cinco tribunais eclesiásticos. "Hoje, a simples menção ao meu nome causa urticária na IPB", admite, sem esconder certo desdém. A partir de então, defende suas idéias, baseadas no que chama de cristianismo ecumênico, através de livros, palestras e aparições mais ou menos freqüentas na mídia. Ele parece não se incomodar com as pesadas críticas que recebe de boa parte da comunidade evangélica nacional. "Tenho sempre muita complacência com os murmuradores que me atiram pedras. Divirto-me com suas idiossincrasias e pavonices", desdenha, recorrendo ao seu rebuscado vocabulário. "O céu pertence a todos os seres humanos, sem distinção religiosa ou de sexo", finaliza.

Evangelho adulterado-"O que faz um pastor não é a sua orientação sexual, mas o chamado e a vocação, que provêm de Deus", faz coro o teólogo e escritor gaúcho André Sidnei Musskopf, ligado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em São Leopoldo (RS). Autor do livro “Uma brecha no armário”, ele acredita que a presença de um pastor homossexual - seja masculino ou feminino - numa comunidade é uma grande possibilidade para o início de uma discussão franca e aberta sobre sexualidade. "Em geral acredita se que estas pessoas não podem ser obreiras eclesiásticas porque viveriam sua sexualidade de forma doentia. Assim, tornam a presença de um pastor ou uma pastora homossexual um problema", comenta.

Já o antropólogo e ativista gay Luiz Mott, 56, fundador da Associação Cristã Homossexual do Brasil, prefere lembrar que a palavra "homossexual" não aparece na Bíblia - segundo ele, o termo só surgiu em 1869, e quando Jesus refere se àqueles que nasceram eunucos, no texto de Mateus 19.12, estava falando, na verdade dos homossexuais. "Deus não faz acepção de pessoas", recita, "por isso, nada impede que um gay ou lésbica seja pastor, padre ou ministro".

Na outra ponta, a de que a existência de que um pastor gay é inconcebível sob todos os critérios, inclusive o bíblico, a capelã e conselheira Eleny Vassão de Paula Aitken, 49, crente presbiteriana, é taxativa: "Alguém que se diz pastor e homossexual nunca viu a Deus ou o conheceu." Ela, que atua no prestigiado Hospital das Clínicas de São Paulo, conta que, em seu trabalho, costuma atender pessoas que vivem dramas espirituais devido à sua sexualidade. "Já conversei até com pastores que mostram ter uma fé genuína em Jesus, mas que ainda lutam contra o pecado do homossexualismo", relata, dizendo que algumas destas pessoas lhe são encaminhadas, muitas vezes, por outros colegas de ministério e por instituições cristãs.

Nestas conversas, conta, fica claro quem aceita o Evangelho e pratica o homossexualismo acaba, mais cedo ou mais tarde, sendo confrontado pela própria consciência. O fato é que, mesmo para aqueles pastores que têm envolvimento com o homossexualismo, a questão de assumir ou não é complicadíssima. A reportagem obteve informações sobre líderes evangélicos que seriam gays, mas à exceção de Victor, nenhum se dispôs a atender a reportagem.

Para o coordenador do Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses), João Luiz Santolin, 37 anos, a questão não pode ser vista de maneira simplista, e sim, de acordo com os preceitos das Escrituras. No seu entender, é a Bíblia quem rejeita a possibilidade de um pastor ser gay: "O apóstolo Paulo enumerou, entre as condições para o exercício do pastorado, que o obreiro seja irrepreensível e marido de uma só mulher", cita. Para ele, essa história de pastor gay é uma aberração que não pode ser tolerada pela Igreja Evangélica. "A Palavra de Deus não deixa dúvidas quanto a essa questão", comenta, citando a passagem do Evangelho de Mateus 19.4. "Ali, Jesus fala que o homem deve unir se à sua mulher, e não a outro homem". Todavia, os defensores da teologia homossexual sempre citam a amuada entre Davi e Jônatas, descrita no Antigo Testamento, como exemplo de união homossexual. Santolin, que também é teólogo, rechaça a tese usando a etimologia bíblica. "O termo usado no original hebraico refere se a afeição, e nunca a amor sexual."

Santolim, que na juventude envolveu se com a homossexualidade, faz do Moses uma entidade voltada, entre outras atividades, à evangelização de homossexuais e aconselhamento espiritual de pessoas que desejam mudar de comportamento. Não é tarefa fácil. "Mesmo a Igreja Evangélica vê o assunto com o tabu e evita discuti-lo de maneira clara e franca. É por isso que muitas pessoas vivem verdadeiros dramas, sem conseguir ajuda."

Já o pastor João Carlos Xavier, da Assembléia de Deus, acha que quem prega que o homossexualismo é aceitável ao Senhor "está debaixo de condenação": E, no caso de o praticam te ser pastor, a situação é ainda mais grave, na sua opinião: "Um pastor não pode ser homossexual, a menos que pregue um Evangelho adulterado" sentencia.

Xavier, durante anos viveu no homossexualismo: "Passei por todas as fases da homossexualidade. Só vim a conhecer uma mulher depois que entreguei minha vida a Jesus." Hoje casado e pai da família, o pastor lançou o livro “O dia em nasci de novo” (CPAD), no qual conta seu testemunho. Ele finaliza com um apelo: "Aconselho a estes pastores homossexuais que peçam socorro e lembrem se de que Jesus está voltando." Outro para quem o homossexualismo é um pecado que requer libertação espiritual é o pastor Valter da Costa, 49, da Igreja Metodista Renovada, em São Paulo. "Deus não pode ser favorável a esta prática, já que é contrária às ordenanças bíblicas", afirma. No caso de pastores, então, Valter tem opinião fechada: "É preciso que busquem a Deus para alcançar misericórdia para as abominações que praticam."

Condição humana - Na opinião do psicólogo Ageu Lisboa, crente metodista, não é de se estranhar o aparecimento de pastores homossexuais nas igrejas. "Se na sociedade está havendo maior expressão do homossexualismo, é certo que isso também acabe acontecendo nas igrejas. Hoje, existe suporte cultural para aquele que decide assumir sua homossexualidade." Por sua vez, a psicóloga Rosangela Alves Justino, 44, membro da Igreja Presbiteriana Betânia de Niterói (RJ), acha necessário que as pessoas entendam que o pastor é um ser humano e a sua condição humana implica em limitações e dificuldades: "Eles são sujeitos às mesmas dificuldades e pecados que qualquer ser humano enfrenta." Para ela, o que faz falta é a conscientização de que, havendo conflitos desta, natureza, isolar se ou viver uma vida dupla não são as melhores soluções "Seja quem for, pastor ou não, precisa de apoio, aconselhamento e, em muitos casos, ajuda profissional, além do carinho e do afeto da igreja."


Duas faces da moeda

Se no Brasil a simples possibilidade de um gay vir a exercer o pastorado é motivo de escândalo, lá fora a presença de homossexuais no púlpito não é algo tão esdrúxulo. Na Europa, setores presbiterianos e anglicanos possuem em seus quadros ministros que dizem em alto e bom som que relacionam se com pessoas do mesmo sexo. O mesmo acontece nos Estados Unidos, onde há igrejas de homossexuais com milhares de integrantes, e ministérios especificamente voltados para o segmento, como o Soulforce. Um de seus diretores é o pastor Mel White, um homossexual assumido que inclusive mantém união estável com um parceiro do mesmo sexo, Gary Nixon - fato que é sabido e respeitado por todos na comunidade. Defensor da polêmica tese de que o homossexual já nasce com essa característica dada por Deus, e que portanto não é possível alterar tal comportamento, White considera que ser gay é uma bênção: Em entrevista a ECLÉSIA, ele fez até uma declaração de fé que pode soar estranha para quem conhece as proibições bíblicas referentes à homossexualidade: "Sou comprometido com Cristo como Salvador e Senhor da minha vida, da mesma forma que nossos irmãos heterossexuais. Minha orientação sexual é uma dádiva de Deus".

Já o pastor Joe Dallas, de 48 anos, fez caminho inverso - do púlpito para a homossexualidade. Ele é autor do “A operação do erro”, livro no qual narra sua experiência como homossexual, que levou à exoneração do pastorado da Igreja do Evangelho Quadrangular.

Depois de cinco anos vivendo no que chama de "conflito", e após haver se submetido a terapia e aconselhamento, Dallas conta que "a cura operou se de modo lento e discreto". Há oito anos, ele trabalha como conselheiro na Newport Mesa Christian Center, na Califórnia, onde atende outros crentes que vivem situações e conflitos semelhantes aos que experimentou. "Fico espantado em ver que é muita gente, inclusive pastores. Mas uma igreja que permite ao seu pastor viver em pecado sem se arrepender é uma igreja que está em grande erro".

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